A relação droga/crime
Segundo
Cândido Agra, a associação entre a droga e o crime, descreve-se por cinco
níveis: comportamentos, indivíduos-atores de tais comportamentos, contextos
eco-sociais e trajetórias desviantes. Nos padrões de comportamento criminal nas
suas diferentes características entre consumidores e não consumidores, o
consumo e a delinquência em conjunto configuram um comportamento especifico não
redutível à soma das propriedades de cada um em separado. Analisadas biografias
no seio do sistema penal e comportamentos em meio natural (bairros da
periferia), verificam-se variadas tipologias de comportamento desviante:
delinquente-toxicodependente, especialista da droga-crime,
toxicodependente-delinquente, sendo que, em contexto eco-social, o
comportamento violento não se associa diretamente ao consumo.
O
sistema penal sofreu alterações ao longo do tempo, nos seus formatos droga-
mercadoria e droga-delito, perspetiva médica e psicossocial sobre a droga, toxicodependente
de delinquente a doente, e consumo nas suas configurações próprias, onde a
produção de conhecimento e significação pelo aplicador da lei, sobre o fenómeno
droga, descobriu o comportamento e o ator como doente viciado, sem poder sobre
os seus atos. A atribuição do “estatuto” de delinquente implicou considerar, idade,
atividade quotidiana, contexto e finalidade do consumo, “transfigurando-se” o toxicodependente
em doente e o traficante em delinquente, sob o questionamento da causalidade da
toxicodependência na delinquência.
São
múltiplos os factos, que explicam como se constitui, funciona e evolui a formação
desviante situada entre a droga e o crime e existem três modos elementares de explicação
da relação droga crime: no causal droga e crime estão ligados direta, simples e
causalmente, o estrutural explica-a pela síndrome da desviância e o processual
explica-a em função da biografia dos indivíduos.
Contudo,
estudos empíricos estabeleceram factos a nível de comportamento, indivíduos,
contextos eco-sociais, trajetórias existenciais e estilos de vida, e cada um
dos modos elementares de explicação se mostrou insuficiente separadamente para
integrar os factos de diferentes níveis. A relação droga-crime deve explicar-se
conjugando a desviância geral ou latente encontrada como fator comum aos
comportamentos desviantes, e mais expressiva na adolescência, o que é normal; o
problema reside na forma como esta desviância se expressa, resolve e evolui na
vida do sujeito. Esta desviância explica em parte a relação droga –crime, mas
por si só não a determina. Enquanto que
existem toxicodependentes que não cometem delitos, no estilo delinquente a
desviância latente é efetivada contra os outros e a sociedade, encontrando-se na
formação droga-crime subestilos, onde
esta desviância geral evolui em quatro estados de envolvimento: consumo de
drogas e a pratica de delitos são comportamentos associados e escolhidos; a formação droga-crime antes
alimentada pela desviância geral retroage sobre esta desviância, num sistema fechado onde droga serve a
delinquência e a delinquência serve a droga; a formação droga crime é um
sistema fechado, sem necessidade de finalidades exteriores que não o aqui do
sistema ou um tempo que não o agora; a
integração de um comportamento por outro, a desintegração do vinculo social,
meio interno e perda de sentido da existência, confere à droga e ao crime o
significado de dependência, dissipando a estrutura da formação droga crime.
A
crença economicista, onde o crime se associa às drogas apenas por questões
económicas, faz surgir uma segunda crença, de que basta resolver as questões
económicas associadas à droga para que a criminalidade deixe de lhe estar
associada, numa parte visível de um plano existencial dissipativo, regido por
quatro princípios: do não investimento, da instabilidade, da unifinalidade, da
evolução fechada ou de envolvimento.
Efetivamente,
o consumo de drogas inscreve-se em quatro planos existenciais (P.S.E.), ou
níveis ou graus de autopoiesis, auto-organização, ou invenção de si, onde o
núcleo deste sistema explicativo é o grau de autopoiesis: do primeiro para o
quarto plano existencial a autopoiesis, que progride em hierarquia, traduzindo
sistemas de experiencia do mundo qualitativamente diferentes, com diferentes
graus de poder, saber e juízo dos seus atos. Num distinto e até oposto
posicionamento do consumo de drogas nas sociedades ocidentais modernas, identificam-se
quatro períodos, cada um deles caracterizado por uma posição dominante: a droga
como invenção de si e do mundo; a droga como espetáculo de si e consumo dos
prazeres; o prazer do consumo; fusão psico-química.
Criticamente,
o conhecimento dos mundos desviantes constitui uma mais valia, retirando o
consumo de drogas e a prática de delitos do vazio, e fazendo emergir a
individualidade do individuo, pois este continua a ser ator. Os habitantes do
mundo droga-crime diferenciam-se a nível interno, externo, temporal e
existencial, sendo os consumidores que aliam drogas duras à delinquência que se
afastam dos padrões dos “normais”. Assumir que a droga é normal nas sociedades
em que vivemos, onde saúde, bem e bem-estar não são necessariamente normais e
convencionais, confere efetivamente ao comportamento desviante a caricatura do
comportamento normal. A droga não atua diretamente sobre o crime, mas por via
de mediações específicas e irredutíveis quer ao fenómeno droga, quer ao
fenómeno crime e no fim da trajetória, a existência desviante é idêntica, sendo
até lá o consumo de drogas e a prática de crimes um estabelecer de diferentes
relações nos diferentes ciclos de vida da trajetória existencial, entre a
contingência e a necessidade. Uma vez que o processo de envolvimento da relação
droga-crime implica diferentes graus de determinantes comportamentais, a trajetória
definida entre o plano ético (na coragem de transcendência e desmentir da
ilusão do individualismo), e o plano inferior onde a dependência como
comportamento solidificado por substancias ou circunstancias (biológicas,
psicológicas, sociais, políticas, ideológicas), agrega-se o fenómeno droga à
estrutura, funcionamento e flutuações das nossas sociedades.
Bibliografia
Agra, Cândido
(2008), Entre Droga e Crime. Actores,
Espaços, Trajectórias, Cruz Quebrada, Casa das Letras
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