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A atualidade do Serviço Social em Portugal


Desregulação do Serviço Social

"… assistimos a grandes transformações no ensino e na profissão do Serviço Social. Num contexto de globalização, neste início de um novo milénio no qual vivemos, a realidade social pode ser descrita pela euforia da incerteza, pela ação que escapa das mãos humanas, fazendo com que todos os sistemas societais pareçam rodar sem controlo, sejam eles o sistema político, o económico, o cultural, o social ou o científico-tecnológico. Como defende Amaro (2012), precisamos de pensar o Serviço Social num novo contexto civilizacional. Neste novo mundo globalizado, as competências ultrapassam a experiência e a tecnologia, e a racionalidade técnico-instrumental domina os sistemas sociais, mesmo que em graus de dominação diferentes.

O Serviço Social, nas suas várias vertentes - axiológica, teórica, metodológica e prática - tem de se reinventar nesse novo quadro civilizacional, ou poderá enfrentar transformações impostas que poderão ditar a sua extinção, por inutilidade ou ilegitimidade. A profissão do Serviço Social tem de assegurar o seu lugar nos novos contextos sociodemográficos, políticos, económicos, tecnológicos e culturais, para que possa melhorar ou desenvolver esses mesmos contextos de existência. Uma das dimensões essenciais desse reenquadramento passa pela formação e pela qualificação dos profissionais.

… o Serviço Social orienta o seu conhecimento para a intervenção, em que as competências para a ação superam a experiência. Aos profissionais é requerida capacidade de ação, competências para a resolução dos problemas sociais rapidamente e com menos recursos, o que não pode deixar de colocar em causa a eficiência das políticas sociais e da intervenção do Serviço Social (Carvalho et al., 2013). O Serviço Social é balizado por padrões de atuação orientados por intervenções "tradicionais" e "paternalistas", guiados por padrões burocráticos e de controlo financeiro dos direitos sociais (cf. Campanini, 2011, p. 649) …a gestão de casos e a burocracia estão a substituir o acompanhamento real dos casos sociais. Essas orientações têm implicações não só para a profissão como para a vida das populações com as quais os assistentes sociais trabalham; a promoção dos direitos humanos e da justiça social são postos em causa e desafiam o Serviço Social a procurar outras formas de atuação.

As medidas de austeridade colocam em causa as políticas sociais, nomeadamente as da saúde, da segurança social e do ensino, agravando os problemas sociais. As políticas caracterizaram-se: pela fragmentação e por se dirigirem a um grupo de pessoas com múltiplas carências em que se identificam situações de dependência e pobreza quando a necessidade já está instalada; por serem efetivadas num quadro de recursos escassos e por vezes inexistentes; pelo acesso controlado por mecanismos de gestão centrado na eficácia bem como eficiência, bem como lucro/sustentabilidade dos sistemas (recursos versus necessidade). Essa transformação coloca em causa o campo de atuação do Serviço Social nas políticas sociais. O Estado não tem capacidade económica para dar resposta às disfunções do mercado de trabalho, demite-se das suas funções de "previdente" e adota uma ação moralizadora de comportamentos. Privatizar, concessionar, bens e serviços públicos, tornou-se a função do Estado. O bem público agora tornou-se bem privado dirigido para o "cliente" e para a satisfação do mesmo, e não para a satisfação do coletivo.

Num contexto de crise global e de crise de legitimidade e financeira do Estado, não é só o investimento nas políticas sociais que é posto em causa, mas também a profissão de assistente social. A desregulação do ensino do Serviço Social diluiu os antigos perfis profissionais, a desregulação do mercado de trabalho, e a crescente importância, liderada pelo mercado, requer novos perfis profissionais do social. Atualmente as ofertas de trabalho, que existem, mas menos bem pagas e com piores condições de trabalho do que no sector público, são no setor privado não lucrativo e, mais secundariamente, no setor empresarial (quer nas respostas sociais desenvolvidas por este setor de bem-estar, bem como na emergente área da responsabilidade social das organizações, que parece estar a abrir novos nichos de mercado que os assistentes sociais têm certamente competências e apetência para preencher).

Numa sociedade global e tecnicista, o Serviço Social tende a ser cada vez mais racional, controlado por legislação e protocolos de atuação enfatizando a técnica como "quase" um fim, e não como meio da sua ação. Esse contexto onde a racionalidade instrumental se destaca, demanda um pensamento "reflexivo". De fato, a política social e o Serviço Social da/na sociedade de risco tornam-se reflexivos quando se confrontam necessariamente com os seus resultados, tensões, conflitos, contradições e desafios (Zinn, 2008). Embora seja o próprio Estado social, e as suas políticas sociais, a produzir riscos sociais, o Serviço Social vê-se na contingência de continuar a ser aquele que tem de atender a velhos e novos riscos. O Serviço Social constitui-se como agente fundamental promotor de reflexividade implícita em processos de criação e superação de riscos sociais, pelas várias dinâmicas societais.

Desafios na atualidade

O Serviço Social português foi construído num contexto ditatorial e de assistência social, mas nas últimas décadas soube modernizar-se, integrando-se no âmbito dos direitos humanos e da justiça social. Contudo, ainda enfrenta grandes desafios e imensos problemas em termos do conhecimento, do ensino e da profissão.

Neste período com maior relevância da participação na reinvenção da política e da cidadania na sociedade de risco, defronta-se também com a importante ocasião de intervir mais e melhor na realidade social em que opera (Beck, 1992; Franklin, 199). O duplo mandato do Serviço Social, no oximoro de emancipação-controlo, certamente deixa a profissão e os profissionais em algum clima de incerteza e de ambiguidade. Se em momentos mais "normais" (à semelhança da perspetiva estrutural da ciência de Kuhn) a tensão se esbate, pelo contrário, nos momentos de incerteza como os vividos presentemente, nos quais as certezas se desmoronam, as tensões voltam a ressurgir com força (Amaro, 2012).

Reconhecendo a produção "social" dos problemas sociais que abalam as sociedades mais desenvolvidas, podemos constatar que no presente contexto do Estado social português, na senda das transformações do denominado modelo social europeu, impera a "individualização" como fenómeno central da vida dos cidadãos e dos próprios sistemas sociais. A individualização, no sentido que lhe dá Beck (1992), traduz-se numa dimensão de emancipação dos sujeitos em relação à tradição, aos sistemas tradicionais, políticos, sociais, culturais ou econômicos.

Contudo, para lá da dimensão de perda da estabilidade tradicional, a individualização apresenta uma dimensão de reintegração, no sentido de integração nos novos tipos de envolvimento social, nomeadamente integração em sistemas secundários, como o mercado de trabalho e os sistemas de segurança social (Zinn, 2008). Essas dimensões da individualização produzem, antes de mais, "padrões biográficos institucionais", em resultado das entradas e saídas contínuas dos sistemas formais, muitos deles relativos às políticas sociais, como a educação, a segurança social, a saúde ou o mercado de trabalho.

Os indivíduos tornam-se "entidades autogovernadas" (O'Malley, 2008, p. 55), levando a que as intervenções sobre os cidadãos sejam fundamentalmente baseadas nas suas capacidades, potencialidades e limitações, como se cada indivíduo se revelasse um ser atomizado do sistema. Deste modo, a governamentalidade dos problemas e dos sujeitos é efetuada com base numa "individualização personalizada" e na tecnologia, nos seus produtos e na sua racionalidade. O Serviço Social no presente não tem conseguido impedir-se de ser agente dessa governamentalidade. O Serviço Social terá de ultrapassar o perigo de posições meramente reativas e defensivas, a pensar num Serviço Social mitológico, de um tempo passado, real ou imaginado.

… após este percurso sobre o Serviço Social em Portugal, a profissão, na sua vertente de práxis e de saber, terá mais a ganhar com posições proactivas nas quais reconheça os desafios e os incorpore, de modo a defender seus princípios e legitimidade.

É importante não recear as mudanças sociais e políticas, nem os outros profissionais e perfis profissionais do social como meros inimigos e concorrentes, pois parece mais importante a colaboração e a solidariedade multidisciplinar e transdisciplinar do que a criação de guetos profissionais corporativos que fragilizam mais do que fortalecem. E para que isto seja possível há também a necessidade de desconstruir o "obscurantismo identitário" (Amaro, 2012), relacionado com certo "provincianismo" (Campanini, 2011), que impede a visibilidade do Serviço Social no âmbito da academia e da divisão social do trabalho. Para ultrapassar essas questões é importante a reflexão fundada na humildade científica, bem como o consentimento das diferentes visões da profissão, e não homogeneização-hegemônica da profissão e dos profissionais, o que só empobrece a ambos e pode remeter também o pensamento do Serviço Social para um "novorriquismo" que não tem em consideração o seu passado. 

Para concretizar esse pensamento é necessário um movimento de reflexão dual: por um lado, a abertura multidisciplinar a outras áreas do saber e, por outro, a construção de um saber transdisciplinar específico do Serviço Social, que possibilite a construção da sua identidade cognitiva, operativa e deontológica (Carvalho et al., 2013).

As questões sobre a visibilidade do Serviço Social não se podem imputar exclusivamente aos profissionais… o Serviço Social é o resultado do modo como a sociedade e o Estado estão organizados. Para que o Serviço Social se destaque na sua função, a construção do bem-estar das populações, é necessário que os profissionais estejam motivados para participarem nesse processo, mas também que a sociedade e o Estado estejam recetivos a essa mudança. É nesse cruzamento entre a teoria e a prática, por um lado, e as possibilidades e a motivação, por outro, que consideramos ser importante desconstruir o domínio da prática sobre o saber teórico e o voluntarismo profissional, uma prática que acontece apenas com base nos princípios e na ética profissional. O conhecimento em Serviço Social necessita ser validado pelos agentes sociais relevantes - os cidadãos, a sociedade, as organizações e o Estado - e pelos assistentes sociais.

A qualificação dos assistentes sociais é uma condição essencial para uma intervenção mais eficaz, eficiente e relevante para os objetivos de desenvolvimento das sociedades onde o Serviço Social intervém, pois é fator de empowerment dos profissionais, para que estes possam ser elementos capacitadores e catalisadores do empowerment dos sistemas-cliente (Pinto, 2011). Os vários agentes da profissão - assistentes sociais, académicos, clientes e seus familiares, comunidades, sociedade civil e o Estado - são desafiados a trabalhar em conjunto para definir regras de qualidade do ensino e da profissão, assente no desenvolvimento do capital humano e capital social da profissão e dos profissionais.

… é fundamental melhorar as qualificações, dos profissionais e dos agentes académicos de formação, bem como o desenvolvimento de uma cultura profissional de associação, fundada na confiança recíproca e na colaboração solidária (Carmo e Pinto, 2011). Para poder vingar como área do conhecimento e como profissão nos tempos futuros, o Serviço Social vai necessitar viver em autenticidade, isto é, assumir perante si próprio os seus valores, saberes e práticas, de uma forma reflexiva e integrada."



Carvalho, Maria Irene, & Pinto, Carla. (2015). Challenges faced by Social Work in Portugal nowadays. Serviço Social & Sociedade, (121), 66-94.