Dar o peixe, ensinar a pescar ou remover os muros?

Assistente social - Identidade e saber

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"... Não basta saber; para agir é preciso ser para querer e mobilizar-se como instrumento do seu próprio trabalho, atribuir sentido à atividade e apresentar-se como profissional no contexto das interações. A forma identitária permite encontrar a coerência interna e articular o fluxo das representações saídas do passado com o que se quer fazer no futuro, é uma plataforma de segurança, básica para a ação, embora sempre provisória e sujeita a uma tensão permanente, cuja gestão exige suportes de mediação.

As instituições de ensino têm a responsabilidade de definir a estrutura sócio cognitiva básica da profissão. Para isso precisam ultrapassar barreiras, estabelecer laços de cooperação entre si de modo a integrar permanentemente os contributos das ciências sociais, os resultados da investigação na disciplina, a experiência dos atores profissionais individuais e coletivos, os contributos dos decisores políticos e empregadores. A profissão, para existir, tem que ter utilidade social reconhecida por quem precisa destes profissionais para desenvolver políticas e serviços. Por excelente que seja, nenhum profissional, nenhuma escola, ator, país ou centro de investigação, constrói isoladamente a profissão. O património de conhecimento e de experiência da profissão com a sua trajetória sócio histórico de experiência e de saber de ação não pode ser ignorado, desprezado ou olhado com arrogância.

Ser profissional implica ter autonomia para exercer a atividade, significa ser capaz de selecionar, escolher e reorganizar as ações, definir intenções e sentidos, gerir as prescrições, estabelecer as estratégias profissionais para agir nas relações de força existentes, ultrapassar os constrangimentos e utilizar as hipóteses possíveis para criar oportunidades de ação. Mas passar do conhecimento dos problemas das populações à construção dos problemas profissionais exige um exercício de problematização. 

No contexto da ação e perante os problemas das pessoas, instituições, normas, situações, contextos e relações, o profissional precisa construir os seus problemas profissionais; se os problemas das populações são a matéria-prima dos problemas profissionais, não são em si mesmo os problemas profissionais. Ficar preso aos problemas das populações leva à inoperância, ao pessimismo, ao conformismo e passividade profissional. Construir problemas profissionais significa estruturar a complexidade do real, estabelecer etapas de resolução, identificar obstáculos a transpor, tomar decisões, delinear estratégias, procurar compreender e explicar os fenómenos sociais e as sua manifestações singulares, classificar, ordenar, categorizar, e sobretudo, procurar respostas para transformar problemas em possibilidades de ação profissional nos processos de mudança. 

… o problema profissional:
• Não é o desempregado, mas conseguir a inserção no mercado de trabalho;
• Não é o isolamento, o individualismo, mas sim construir, restaurar os laços, fortalecer os atores coletivos; 
• Não é a carência, mas sim conseguir os meios e desenvolver o processo de provisão de recursos; 
• Não é a falta de coesão mas antes como restaurar a coesão social, estabelecer a articulação entre sistemas sociais. 

… Não se pretende generalizar mas tão-somente afirmar que estes profissionais são detentores de um saber agir que mobilizam para enfrentar os seus problemas profissionais. Esses saberes e interrogações podem dar pistas para a continuação de investigação sobre o saber de ação.

a) Constroem os seus problemas profissionais: 
• Elaboram diagnósticos abrangentes e fundamentados com respeito pela privacidade das pessoas sem sobrepor instrumentos de pesquisa e com articulação de informação dispersa já disponível; contrariam juízos de valor e preconceitos de outros grupos profissionais, sistemas sociais e senso comum instalado; 
• Identificam bloqueios e possibilidade de ação de acordo com as pessoas, grupos e comunidades, suas especificidades, modos de vida, recursos e limites, lógicas de grupos, interações e eventuais efeitos positivos ou perversos da ação; 
• Identificam necessidades de medidas preventivas face a riscos previsíveis;
• Definem critérios coletivos de análise das situações, trabalham em equipa utilizando os diversos saberes disponibilizados;
• Valorizam as análises das situações globais e não apenas as condições objetivas facilmente mensuráveis.

b) … as interrogações continuam:
• Como conseguir as sínteses teóricas necessárias para a interpretação dos problemas, perante um conhecimento cada vez mais complexo, diversificado, segmentado em disciplinas, que explicam os fenómenos mas não podem dar receitas para intervir nos processos de mudança? 
• Como avaliar riscos, trabalhar na urgência das respostas, no fluxo imparável, sem fim e imprevisível da ação, e gastar o tempo necessário, no seio dos contextos institucionais, dos prazos e prescrições dos projetos e das políticas, para construir os problemas profissionais?

c) Desenvolvem a sua atividade dirigida para as populações:
• Centram o trabalho nas competências das pessoas e não apenas nos seus problemas, identificam os recursos pessoais, mesmo desvalorizados pela baixa auto estima, valorizam saberes, modos de vida e culturas;
• Desenvolvem processos pedagógicos para trabalhar comportamentos desajustados e ressocializar de forma positiva indivíduos com atitudes e comportamentos que dificultam a interação nos diversos sistemas sociais. Estimulam o desenvolvimento de capacidades de populações com percursos de vida muito difíceis, identidades perturbadas e frágeis recursos sociais, culturais, simbólicos, relacionais; 
• Asseguram conhecimento concreto e personalizado das populações e criam e animam grupos, associações de auto ajuda e solidariedades para os diferentes tipos de problemas; 
• Fazem mediação intercultural entre população, outros profissionais, agentes sociais, organizações, serviços e exercem a advocacia social com vulgarização de informação sobre recursos, direitos e deveres;
• Enfrentam situações de ansiedade, agressividade, angústia das populações com quem têm que interagir e asseguram processos de comunicação eficazes, estimuladores da participação, da reflexão, para permitir situações de interação positivas e facilitadoras da ajuda;
• Garantem o acolhimento de pessoas mesmo quando a interação é dificultada por problemas graves de comunicação, ausência de higiene e agressividade;
• Atendem e negoceiam interesses diversos e muitas vezes paradoxais, e, apesar das interrogações, fazem escolhas, tomam decisões e correm os riscos inerentes; 
• Apoiam nas situações de crise, preparam e gerem situações de perda nas diferentes etapas da vida;
• Encontram respostas de emergência consistentes para populações em situação de exclusão extrema e adaptam-nas aos problemas com respeito pelos laços relacionais, modos de vida e culturas;
• Asseguram o apoio em rede, estabelecem alianças, preservam laços primários e familiares, asseguram participação das famílias e grupos, gerem conflitos e negoceiam acordos;
• Desenvolvem aprendizagens significativas e reflexivas para aumentar capacidades sociais; 
• Exercem o controlo social numa perspetiva pedagógica, com respeito pela autonomia e reconhecimento do outro enquanto ser humano com direitos e deveres; 
• Organizam atividades alternativas aos sistemas sociais para responderem a necessidades e criam e organizam atividades de expressão artística, cultural que promovem capacidades transversais nas populações;
• Organizam conhecimento e informação sobre os territórios e sobre recursos (como rede de transportes, serviços diversos, mercado de trabalho);
• Co-responsabilizam as populações pelo tratamento das situações, resolução dos problemas, atitudes e comportamentos; 
• Desenvolvem ações sem acentuar ruturas de laços sociais e asseguram redes de relações entre gerações; 
• Defendem as populações como seres humanos na sua totalidade indivisível, que não podem ser espartilhados nas suas múltiplas necessidades;
• Reconhecem prioridades e ordenam as respostas entre o interesse dos utentes e as medidas de políticas sociais;
• Identificam as lógicas das populações, interações comunitárias e seus eventuais efeitos positivos ou perversos na ação; 
• Articulam intervenção das diferentes instituições que interagem com os grupos e populações respeitando as lógicas e formas de organização específicas e sua caracterização dos problemas;
• Fazem a mediação entre poderes profissionais diversos e populações com poder reduzido e proporcionam aos grupos profissionais que atendem necessidades específicas a visão global da vida das pessoas; ocupam-se desse global e fazem a ligação com o quotidiano e suas implicações, possibilidade e limites; 
• Preveem dificuldades de contacto das populações com serviços e diferentes instituições e estabelecem as mediações que permitem o seu acesso aos serviços; 
• Identificam e previnem a exploração e estigmatização de pessoas vulneráveis e fragilizadas;
• Ultrapassam as barreiras das estruturas sociais mais pesadas e cujo funcionamento muito regulado não permite agilizar os processos em caso de emergência; intervêm no funcionamento normal dos sistemas e aparelhos profissionais para atender particularidades e singularidades das populações;
• Dinamizam intervenção de outros atores e articulação de sistemas família / educação/ saúde /serviços de apoio social/ tribunais/ emprego/ formação profissional/empresas e outras organizações e identificam lógicas diversas de funcionamento para desbloquear, aproveitar campos de ação e fazer funcionar os sistemas que interagem com as situações singulares;
• Gerem recursos escassos, organizam processos de distribuição com respeito pelas prioridades; 
• Organizam atos de consumo que sejam complementares aos circuitos normais de comércio e que sejam mais justos para famílias com baixos recursos; 
• Procuram na comunidade os recursos necessários para que as pessoas possam cumprir as medidas previstas e estabelecidas nos acordos; 
• Adquirem competências de gestão, para saber prestar contas, medir eficácia, desenvolver instrumentos de controlo para utilização de fundos públicos; 
• Garantem provisão de necessidades básicas de apoio a pessoas sem retaguarda familiar, estabelecem redes de sociabilidade, combatem isolamento, respondem a necessidades relacionadas com a sua vida quotidiana. 

d) … a complexidade das situações em que intervêm gera muitas interrogações e novos problemas: 
• Como respeitar interesses da população que procura emprego com as condições objetivas das ofertas existentes, exigências dos empregadores, desenvolvimento das capacidades de inserção social dos desempregados, situações de desafeição ao trabalho devido a baixos salários, más condições de trabalho, normas desajustadas?
• Como respeitar direitos de cidadania da população, sua necessidade de encontrar fonte de rendimento num mercado de trabalho desregulado?
• Como conciliar regras do RSI sobre medidas de inserção numa sociedade cuja cultura não valoriza o trabalho manual, e as possibilidades que os indivíduos têm de encontrar emprego se situam quase exclusivamente em postos de trabalho pouco qualificado?
• Como enfrentar o poder judicial, as políticas e suas regulações que generalizam e ignoram contextos sociais?
• Como intervir em situações multi problemáticas quando a solução dos problemas exige soluções abrangentes como a falta de alojamento, os baixos rendimentos, o desemprego e desqualificação, a violência doméstica, as situações de negligência? Que ligações estabelecer e ação desenvolver face a regularidades sociais identificadas e onde a possibilidade de influenciar ou agir é reduzida? 
• Que respostas para uma escolarização que qualifique, de acordo com as exigências socialmente estabelecidas, face a populações desmotivadas e com défice nos recursos sócio cognitivos já construídos? 
• Como intervir para travar a reprodução social e multiplicação de problemas? 
• Como gerir problemas acumulados ao longo de percursos de vida, que atravessam gerações, com sucessivas escolhas e decisões desfavoráveis relativamente a consolidação de autonomia e utilização de recursos?
• Como intervir nas famílias que têm elementos com dependências problemáticas, com comportamentos agressivos e que não aceitam tratamento ou fazem tratamentos sucessivos sem resultados? 
• Como garantir o apoio a pessoas muito fragilizadas, com recursos e poder reduzidos sem criar dependência?
• Como envolver famílias não motivadas para acompanhar percursos escolares dos filhos que abandonam a escola ou estão em processo de desligamento?
• Como intervir em meios culturais que não valorizam a escola, que incentivam condutas socialmente desviantes ou marginais como o tráfico de droga e a mendicidade infantil? 
• Como dinamizar associativismo entre grupos de população e criar condições para expressão valorizada de afirmação cultural?

e) Intervêm nos funcionamentos institucionais:
• Dinamizam e participam no fortalecimento e consolidação das equipas necessárias ao funcionamento eficaz das instituições;
• Procuram construir condições objetivas espaciais, materiais e relacionais que facilitem processos de socialização positiva, de fortalecimento de auto estima e satisfação de necessidades específicas ou globais;
• Organizam informação sobre normas e recursos disponíveis com consulta rápida e eficaz;
• Adaptam funcionamentos institucionais a necessidades de grupos específicos; 
• Humanizam os funcionamentos institucionais, as intervenções de outros profissionais; 
• Articulam interesses dos assalariados com os interesses das organizações e a qualidade dos serviços que prestam; formam e resolvem problemas do quotidiano para melhorar a qualidade de serviços prestados sem esgotar os cuidadores e voluntários; 
• Asseguram informação de proximidade necessária aos outros profissionais;
• Asseguram coordenação e cooperação entre serviços, adaptam regras, programas de apoio, projetos, normas institucionais necessárias ao funcionamento dos serviços com atividades flexíveis que se adaptem às populações; 
• Coordenam e cooperam com diferentes profissionais e serviços e asseguram a mediação entre serviços e família, entre equipamentos e comunidades envolventes;
• Fazem a mediação entre as diferentes culturas religiosas, filosóficas populares e as lógicas de outros profissionais e decisores. 

f) Ultrapassam dilemas éticos e afirmam princípios deontológicos da profissão: • Assumem a função de ajuda em simultâneo com a de controlo social e de representante de autoridade;
• Decidem sobre problemas que põem em causa percursos de vida e direitos e decidem em situações paradoxais; 
• Identificam escalas de valores das populações, as implicações nas suas estratégias e articulam com as suas responsabilidades profissionais e a necessária racionalização dos recursos.

g) Constroem sensibilidade social, resistência psicológica e gerem emoções:
• Controlam o seu etnocentrismo e os julgamentos sobre a vida, valores e problemas existentes; 
• Identificam indícios de problemas latentes e pouco visíveis; 
• Procuram equilíbrio no seu envolvimento emocional relativamente aos problemas graves de populações muito vulneráveis, sem perder a sensibilidade social necessária para compreender os problemas, sua origem, e ao mesmo tempo garantir objetividade nas avaliações e nas decisões. 

h) … persistem interrogações: 
• Como garantir direitos de cidadania e privacidade relativamente a populações que precisam recorrer ao apoio de serviços públicos de ação social em territórios com redes de inter conhecimento aprofundado e onde os atores sociais desejam que a ajuda seja acompanhada de controlo social? 
• Como articular com outros sistemas que podem intervir em situações onde claramente é preciso controlo social?
• Como gerir situações de exigência de controlo, distanciamento emocional e empatia com populações com comportamento desviante, desajustado, agressivo, resultante de processos de socialização negativa e condições objetivas de vida desestruturadoras de identidades positivas? Como promover a sua ressocialização para favorecer o exercício de papéis familiares e sociais? • Como resistir à frustração permanente perante problemas graves claramente identificados que atingem grupos mais vulneráveis e sem dispor de recursos para dinamizar a sua resolução, não poder resolver problemas? 
• Como organizar voluntariado e gerir os grupos de voluntários e profissionais para que os seus interesses próprios não se sobreponham aos interesses das populações que apoiam?

i) Produzem e valorizam o saber profissional: 
• Realizam processos de reflexão individual e coletiva, muitas vezes de forma informal, onde debatem as suas próprias representações sobre os utentes, sobre os problemas, sobre os modelos de intervenção;
• Estimulam exercícios de meta cognição e processos de transferência que articulam a teoria e a atividade profissional, a utilização de saberes anteriormente estruturados em novas combinações exigidas pela realidade concreta;
• Estimulam a aprendizagem do grupo profissional pela reflexão coletiva inter pares, formal e informal, e influenciam comportamentos e atitudes dos profissionais mais novos para garantir cultura profissional própria; 
• Estimulam o grupo profissional para debater políticas direcionadas para problemas que, sendo individuais, começam a generalizar-se;
• Fazem a estruturação de situações problema, modelos de intervenção que se constituem como repertórios que depois são disponibilizados às equipas;
• Recompõem métodos e tecnologias de intervenção social com divulgação de boas práticas do seu repertório ou dos coletivos que demonstram resultados.

j) … também neste campo permanecem muitas interrogações: 
• Como estimular a escrita profissional e redação de processos verbais e treinar a capacidade dos profissionais para explicar claramente quem são e o que fazem em articulação com as instâncias de formação e investigação, numa ligação permanente entre o exercício profissional, a formação e a investigação sobre a disciplina? 
• Como desenvolver a atividade discursiva profissional, elaborar sínteses teóricas de forma a serem transferíveis para novos contextos de problemas, dominar conceitos e linguagem de disciplinas diversas necessárias ao saber profissional? Como desenvolver capacidade argumentativa, para produzir saber legitimado pela comunidade científica e ter autoridade junto dos públicos externos e internos?
• Como passar de análises e compreensão dos processos psicossociais para a criação de alternativas de acordo com a compreensão teórica dos processos, considerando as dificuldades de gestão do quotidiano das instituições sem acomodação nem pessimismo paralisante? 
• Como estimular a atividade reflexiva na e sobre a atividade profissional, transformar o testemunho subjetivo em trabalho intelectual, permitir a formalização dos saberes, sua transformação e recriação? 
• Como assegurar transversalidade das diferentes áreas de intervenção, ser generalista sem ser superficial?
• Como assegurar escrita profissional que seja operativa e sirva de base a equipas de trabalho compostas por vários profissionais que intervêm junto do mesmo agregado?
• Como enfrentar outras lógicas profissionais e argumentar com fundamento sobre problemas da ação complexa dos assistentes sociais e seus ritmos de execução? 

O desenvolvimento de investigação em rede, envolvendo investigadores, profissionais, centros de investigação, instituições de ensino que se centrem nos problemas, nas estratégias e atividades dos profissionais, pode resultar em contributos importantes para a construção da disciplina. Assim o processo se desenvolva numa perspetiva de construção e de reflexão, prossiga na invenção de respostas para problemas complexos, não acentue a prescrição e a avaliação exterior à própria atividade profissional com desprezo pelo saber agir profissional."



Granja, B. P. (2011). Assistente social-Identidade e saber.



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