Dar o peixe, ensinar a pescar ou remover os muros?

Urgências e Emergências do Serviço Social Fundamentos da profissão na contemporaneidade

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Maria Inês Amaro (2012)
Urgências e Emergências do Serviço Social Fundamentos da profissão na contemporaneidade.
Lisboa. Universidade Católica Editora. 


Prefácio
Repensar o serviço social (1). A proposta não é nova, ela é mesmo, é preciso dizê-lo, recorrente. Tem-se feito do mal-estar do serviço social uma das dimensões constituintes do seu exercício. Aprisionado nas malhas do duplo mandato de contenção do perigo e da autonomização dos clientes, embaraçado nas visões reparadoras e nas visões emancipadoras, o serviço social alimenta-se do terreno da incerteza e faz da busca, constantemente renovada, de referências disciplinares, éticas ou metodológicas o motor do seu desenvolvimento. 

Mas a originalidade da tese de Maria Inês Amaro é a de recusar a enésima busca em profundidade do que seriam «realmente» os fundamentos essenciais do serviço social. Se, com efeito, ela se propõe retomar em novos termos esta questão, é simplesmente porque considera que esta se reatualiza em função de uma mutação societal profunda, civilizacional para retomar os seus próprios termos. O seu racionício parte de uma ideia simples que não podemos deixar de partilhar: o que é próprio do serviço social é providenciar formas de aliviar as situações individualmente experienciadas nascidas de questões coletivas estruturais que importa ultrapassar ou transformar em razão de dinâmicas societais de ordem política, económica e cultural. As tentativas de resposta providenciadas pelo serviço social têm, no entanto, elas mesmas conhecido reajustamentos regulares que interrogam o duplo registo da eficácia e da continuidade. É nesta heurística que se situa a obra de Maria Inês Amaro. O mesmo é dizer que o empreendimento é salutar e que se inscreve numa tradição que apela sem cessar à sua renovação. 

Mas o que pode ser o serviço social numa civilização, que a autora designa de tecnológica ? Em quê, aquilo que havia sido considerado como constitutivo do serviço social, os valores que transportava para as modalidades que punha emmarcha, se encontra perturbado por um contexto totalmente diferente daquele que o viu nascer. Porque, é daí que é preciso partir, o serviço social, tal como foi constituído e sistematizado, é um filho da modernidade. Nasceu de uma combinação singular de ideias progressistas e de compromissos pragmáticos desenvolvidos face aos problemas sociais resultantes do desenvolvimento das sociedades modernas. Foi alicerçado sobre a solidez de um modelo de sociedade politicamente democrático, economicamente liberal e socialmente protetor. Ora este modelo está em vias de se alterar, de modo profundo. Esta mudança da representação do viver em conjunto e do contrato social que o acompanha provoca a emergência de um novo modelo de integração social e a constituição de um novo modelo de intervenção da sociedade sobre si própria de que o serviço social é um dos pontas de lança. 

Este novo modelo de integração repousa sobre uma solidariedade expressiva (integrar-se, não é mais produzir complementarmente e agir em conformidade, mas participar), uma socialização individualizada (ser socializado, não é mais o resultado de uma aprendizagem de conformação às expectativas culturais normativas, mas uma ação voluntária; socializar-se, de qualquer modo, significa ser capaz de se produzir como responsável e autónomo, o que implica a imputa- ção da formação do indivíduo como indivíduo sobre o próprio indivíduo pelo trabalho que sobre si ele efetua) e um desvio concebido como uma incapacidade a participar (a incapacidade de certos membros da coletividade a se auto-instituir constituiu uma falha da socialização porque põe em perigo a participação na instituição da sociedade e concretiza o custo social das limitações individuais de assumir as obrigações sociais de participação). A realização deste modelo de integração passa pela valorização das formas de por em marcha, pela mediação, o suporte ao reforço de si e à ativação da integrabilidade dos indivíduos. A partir daí, as políticas sociais mudam de sentido. Não se trata tanto de desenvolver a proteção dos indivíduos, mas de os encorajar a tomar/retomar lugar na sociedade. Existe de facto uma ligação forte entre esta transformação da integração e a formulação das políticas sociais de responsabilização individual e orientação dos indivíduos para um trabalho sobre eles próprios, refenciado a minima por :
a) O advento de um modelo responsabilista do risco. O risco não é mais um perigo decorrente da organização ou funcionamento da sociedade, com uma imputação de responsabilidade à coletividade implicando proteção e compensação/indemnização dos prejuízos, assente numa coletivização do risco. O risco é preferencialmente visto como uma coisa positiva, um bem que deve ser defendido. Ele torna-se, não somente, o suporte da dinamização da sociedade pela libertação das forças empreendedoras, mas além disso representa um princípio moral do conjunto porque compromete a coletividade e os seus membros numa ética de responsabilidade.
b) A promoção de políticas emancipatórias em detrimento de políticas compensatórias. Neste modelo participativo de integração, importa facilitar a disposição de agir mais do que compensar os efeitos da ação, o que supõe converter as disposições inibidoras em disposições capacitantes através do desenvolvimento de políticas animadas por um Estado que torna capacitado. 
c) A condicionalidade do apoio. A condicionalidade, prioritariamente orientada para os sem emprego por incitação à atividade, tende desde então a estender-se à assistência social pela incitação à utilidade. A condicionalidade traduz de facto a disponibilidade dos cidadãos a participar na sociedade, participação que não é tanto um dever social fundamental, mas uma necessidade fundamental para estar em sociedade e ser um ser em sociedade. 
d) A formulação de políticas de «boas práticas» em termos de prevenção. Dado que, numa lógica empreendedora da participação, o fim é reduzir ao máximo as possibilidades de realização do risco, importa informar todos os cidadãos dos riscos conhecidos e calculáveis e da relação entre materialização do risco e comportamento de risco. O investimento preventivo no desenvolvimento do potencial humano é entendido como a condição que permite a cada um assumir as consequências das suas escolhas. 

Como, e compreende-se bem o pensamento de Maria Inês Amaro, o serviço social, que se desenvolveu num contexto solidarista de promoção da segurança e desenvolvimento da redistribuição, pode permanecer o mesmo num contexto no qual não se trata mais de desenvolver a proteção dos indivíduos, mas de os encorajar a retomar um lugar na sociedade pela ação que eles próprios desenvolvem? 

O segundo mérito do empreendimento de Maria Inês Amaro, depois de ter fortemente lembrado a necessidade de situar o trabalho no contexto social, político e cultural no qual ele se desenvolve, é, no mesmo movimento, de recusar uma leitura exclusivamente historicista. É certo que o serviço social na sua existência como na sua factualidade, no seu projeto como na sua eficácia, deve ser contextualizado para ser pensado, mas ao mesmo tempo, uma tal apreensão não pode ser exclusiva e deixar de lado o que é, e do que realmente faz o serviço social num dado momento societal. Ele é também dotado de propriedades, que na falta de serem o fruto de uma essência profunda, não são menos resultantes da sua própria história, dos conflitos que o têm animado, das contradições que o têm atravessado e dos ideais que o têm movido. Todas estas heranças, valores e práticas, projetos e métodos, continuam a se expressar, ou pelo menos a procurar fazê-lo, nas diferentes situações socio-históricas que ele conhece. E é justamente a atualização destas propriedades pela experiência que a obra de Maria Inês Amaro ensaia decifrar. O seu projeto central é portanto apreender como um novo contexto e propriedades historicamente construídos se articulam para dar forma a novas concretizações do serviço social hoje. Projeto intelectual forte, pois trata-se de superar ao mesmo tempo uma leitura determinista e uma leitura essencialista para se empenhar nos caminhos de uma apreensão sincrética combinando a emergência de um modelo responsabilista de intervenção da sociedade sobre si mesma e a preservação de propriedades normativas e práticas do trabalho sobre o outro. O serviço social não é portanto aqui reduzido a uma ferramenta societal lábil mudando ao sabor das transformações das sociedades, não apenas uma identidade intrínseca, portadora de qualidades inalienáveis simplesmente entravadas pelas condições societais pouco favoráveis. É, ao contrário, restituído à sua complexidade. E é nesta dimensão que esta obra é ambiciosa e, é preciso dizê-lo, ela consegue de um modo muito convincente atingir os seus objetivos. 

A sua terceira qualidade, que explica em parte o comentário conclusivo precedente, deve-se à sua vontade de, ao mesmo tempo, ultrapassar o escolho do propósito ensaísta e generalista sobre as mutações contemporâneas das nossas sociedades, e de não soçobrar nas ânsias do muro das lamentações (2) reportando a partir do terreno todas as insatisfações nascidas das transformações vividas no exercício do trabalho quotidiano. Articulando, desta vez, uma perspetiva macro-analítica e uma apreensão micro-empírica para dar conta do sincretismo referido entre efeitos de contexto e força das propriedades, Maria Inês Amaro propõe uma demonstração convincente porque duplamente enraizada. Ela recorre de facto a duas fontes, a análise da dinâmica das sociedades contemporâneas, por um lado, e ao relato das experiências de terreno realizadas, no atual contexto, pelos próprios assistentes sociais. Esta dupla articulação empírica confere todo o peso e toda a credibilidade ao raciocínio seguido e permite ao leitor apreender plenamente todos os aspetos do serviço social que se atualiza hoje em dia. 

O paradoxo da tese avançada no final da obra, é o de que o serviço social evidencia nesta atualização sincrética, as fórmulas passadas, ainda que sob novas roupagens, mas sobretudo as velhas fórmulas que a priori não seriam expectáveis. Numa civilização tecnocrática, totalmente estruturada pelo risco, a incerteza e a fragmentação normativa, ao mesmo tempo ancorada numa racionalidade instrumental levada ao extremo, são duas propriedades bem estranhas a este universo que Maria Inês Amaro distingue como nodais nesta recomposição do serviço social: os registos políticos e éticos. Num élan de profissionalismo, o serviço social poderia valorizar a consolidação dos métodos de intervenção ou a eficácia das atividades desenvolvidas; para fazer face à incerteza e ao risco, poderia fazer valer a segurança da sua deontologia e a seriedade da sua empresa; para se apresentar como eco da racionalidade tecnocrática poderia desenvolver a eficácia dos seus procedimentos e caráter avaliável dos seus resultados. Ora, as linhas de força que sustentam esta recomposição do serviço social no contexto contemporâneo tomam a forma de uma repolitização e duma afirmação ética.

A relação do serviço social com o político foi sempre um longo flirt atormentado, desde as inspetoras das empresas (3) e as visitadoras ao domicílio, procurando pacificar a classe operária nos seus locais de trabalho ou nos seus meios de vida, ao trabalho comunitário visando reforçar a capacidade de afirmação e de reivindicação das categorias sociais singulares. Não é portanto surpreendente, bem refletindo, que após anos de atonia política, ocupado como estava a percorrer os meandros da individualização, da responsabilização e do acompanhamento, que redescubra as questões políticas que se escondem por detrás do retorno da assistência para todos aqueles que são os restos da lógica generalizada da inser- ção. Não é surpreendente que o serviço social se torne resistente e mobilizado, porque justamente a sua posição intermediária entre espaços, entre a expectativa institucional e a realização individual, coloca-o numa boa posição para percecionar que a centração na responsabilização individual e ativação sistemática não têm sentido senão com base num suporte mínimo que sustente a iniciativa dos indivíduos, salvo para falsear estruturalmente o jogo e esvaziar do seu sentido todo o esforço nesta direção. A neutralidade torna-se então cumplicidade ou cegueira e desqualifica o serviço social condenando-o mesmo a renunciar às suas propriedades «históricas» e ao seu enraizamento intrinsecamente ético.

O apelo aos direitos do homem e à justiça social não é um discurso de circunstância num tal contexto. Representa a força normativa desta resistência política do serviço social em reação à linha de ação tão indiscutível como evidente, a inserção, que se lhe impõe. Baseado sobre um credo profundamente partilhado, para além das opções ideológicas e dos posicionamentos políticos, a totalidade das estruturas de intervenção com as populações desinseridas do mundo do trabalho concentra-se sobre as ações visando, através de diferentes modalidades, o retorno ao trabalho, ou pelo menos a preparação intensiva para isso. O horizonte de expectativa é então profundamente legítimo e desejável, conferindo à inserção uma primazia indiscutível. Mas, ao fazê-lo, a inserção é também enublante porque oculta a evidência que lhe escapa, constrangida a considerar pelo seu prisma aquilo que, justamente, não está no seu campo de apreensão ou, antes de mais, onde não há podido entrar. As populações vulneráveis, aquelas que cabem às formas contemporâneas da assistência social, não são mais do que um resto, o saldo de todas as operações e tentativas de inserção postas em prática de forma cada vez mais específica no seu lugar. Mas, estando condenado a não as apreender como tal, como tendo escapado à lógica da inserção, o serviço social encontra-se desmunido para agir no seu lugar por não tomar paradoxalmente em consideração a sua particularidade comum, que é o seu afastamento duradouro face ao emprego. 

Compreende-se assim melhor a exigência dissonante que sentem os atores do terreno, manter uma perspetiva de inserção para aqueles que apresentam como característica não serem inseríveis. A sua ação confina-se pelo menos à manutenção de uma ilusão quando não é pura e simplesmente uma imputação de responsabilidade individual ao beneficiário, ainda que percebam, sem sempre saber como, a necessidade de intervir de outro modo. Apercebem-se das portas abertas, aí se precipitando por alguns, correndo o risco de se queimar, fecham-nas rapidamente para outros, por prudência institucional. Mas todos permitem ver a inanidade da sua ação porque pensada por referência a uma perspetiva exclusiva que fez, ao longo do percurso biográfico e institucional das populações apoiadas, a demonstração da sua inadequação. Mais do que a identificação dos bloqueios e disfunções, esta solicitação da experiência dos profissionais do terreno permite interrogar os pressupostos sobre os quais repousa a sua ação. Não se trata de um quadro negro do seu contexto que desenham, mas antes de mais o buraco negro da sua ação aspirando sentido, legitimidade e eficácia para não filtrar senão as populações face às quais se encontram desmunidos. E a sua procura de soluções, o seu desejo de agir de outro modo, a sua crença persistente na possibilidade de fazer qualquer coisa, alimentando a necessidade de pensar por si próprios a intervenção dirigida às populações vulneráveis, de a inscrever numa outra lógica não exclusivamente orientada para a inserção no mercado de trabalho e sobre o altar do consumo, de fazer repousar sobre todos estes «inadaptados» do mundo do trabalho contemporâneo, longe de serem todos «preguiçosos» ou «vigaristas», para tentar dar-lhes um lugar reconhecido e significante, quando mesmo a inserção convencional o não seria. É aqui que o registo ético constitui uma alavanca importante para implicar uma profunda revalorização da dimensão de «ajuda» do serviço social em torno da função «diplomática» de manutenção do laço social sem um projeto que vise promover o desenvolvimento da ajuda enquanto relação, hoje maltratada pelo peso dos constrangimentos (controlo administrativo e ideológico nomeadamente responsabilista). 

Como vemos, a obra de Maria Inês Amaro não nos poderia deixar indiferentes, pela sua qualidade, pelo seu rigor e pela força da sua argumentação, mas também em razão mesmo dos territórios que abre à reflexão, em razão do que convida a reabilitar no seu ensaio de requalificação do serviço social do século XXI. Sem voos líricos nem posições partidárias, ela estabelece as balizas do debate de amanhã, aquele, a que queiramos ou não, não nos poderemos esquivar. Marc-Henry Soulet Chaire de Travail social et politiques sociales Université de Fribourg (tradução por Francisco Branco, Professor da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa)


(1) N.T : No texto original Marc-Henry Soulet utiliza o termo trabalho social, o que significa, com rigor, reportando ao mundo francófono das profissões sociais, um conjunto de profissões, que entendemos dever designar, no contexto português por profissões do trabalho social, aí incluindo o serviço social, a educação social, a animação social cultural entre outras profissões ou ocupações similares que historicamente se desenvolveram neste campo, pois como Bouquet ( 2005) esclarece En France, l’expression «travail social» a une signification particulière qui diffère de celle qui est utilisé dans d’autres pays. Elle englobe une quinzaine de professions dont celles d’assistant de service social, d’éducateur, d’animateur, d’éducateur de jeunes enfants et de conseiller en économie sociale et familiale. É com este fundamento, de não operar uma descontextualização sócio-histórica das designações profissionais, que aqui adoptámos o termo serviço social.

(2) N.T. : Cahier des doléances no original, respeitando às queixas dirigidas ao Rei expostas nos registos dos estados gerais ou provinciais surgidos no contexto da Revolução Francesa de 1789 (Le Robert Dixel, 2011).

(3) NT: no original a referência remete para a figura francófona das surintendentes d’usine, uma das ocupações profissionais iniciais que esteve na base da institucionalização do serviço social em França (cf. Bouquet et Garcette, 2005).

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