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O Estado e a Cidadania

A consolidação do Estado

“Os elementos básicos do estado apareceram, em quase toda a Europa ocidental, durante os séculos XII e XIII, mas o seu nível de desenvolvimento não foi o mesmo em todas as regiões. Esse desenvolvimento foi mais rápido em Inglaterra e França e nos reinos hispânicos, muito mais lento na Alemanha e rápido, mas com distorções, na Itália” (idem, p.40). Esta é a origem do estado moderno, com um corpo jurídico e um financeiro, administrados por um corpo burocrático, embora em França e Inglaterra os fenómenos se tenham apresentado de outra forma; em França cada província possuía as suas instituições e costumes e para garantir o poder ao rei, os cargos eram ocupados por agentes vindos de Paris, modelo menos eficiente que o inglês devido às dificuldades de comunicação da época. 

Estado Moderno

Em 1300, aproximadamente, o estado soberano evidenciou-se como forma política dominante na Europa ocidental, contudo, embora mais forte que qualquer outra forma política existente, não era suficientemente forte; só após quatro ou cinco séculos os estados europeus ultrapassaram as suas fragilidades, atenuando as deficiências administrativas e transformando a lealdade existente em nacionalismo (Strayer, 1969). Esta autoridade emblemática foi definida inicialmente como comunidade ilusória; mas os actos conquistaram o consentimento, as pessoas inclinaram-se e consciente ou inconscientemente participaram. Denominou-se então a comunidade, de nação ou Estado, um conjunto de pessoas a admitir os mesmos princípios universais (Bourdieu, 1989-1992). Posto isto, as instituições fixas fortaleceram-se, garantiram o domínio geográfico e temporal das regiões, as noções de fronteira intensificaram-se, introduzindo conceitos de nacionalismo. No século XIV uma série de desastres condicionou a inovação política; a depressão, a fome, as pestes e muitas das guerras dos séculos XIV e XV, interromperam ou retardaram, o processo de constituição do estado. A economia estagnou ou até regrediu e a forma mais fácil de um soberano aumentar os rendimentos e poder, era apoderar-se de novos territórios, mesmo dentro das fronteiras de um estado já estabelecido. (Strayer, 1969) 

Começou a formar-se uma nova burocracia em torno dos membros profissionais do Conselho, mais adaptável aos desejos do soberano e mais flexível nos métodos, comparativamente à antiga burocracia corporativa da Idade Média; o rei conseguiu concentrar o poder para si mesmo, concebendo novos cargos burocráticos, como o de secretário de estado. O estado transformou-se em necessidade vital e a Europa ocidental estava preparada para a consolidação das formas de organização e multiplicação das funções do estado; as políticas podiam ser atacadas e os governos derrubados, porém, as contracções políticas não poderiam destruir o conceito de estado. (idem) 

Weber (1964) definiu o estado como uma comunidade humana de sucesso, que almeja a concentração da legitimização do uso da força dentro das linhas de um território e Fukuyama (2004) explicou a construção desse estado, como concretização de novas instituições de governo e fortalecimento das já existentes; o “Mundo Moderno e Económico” foi possível por via da promoção dos estados e suas potencialidades, na disposição da segurança, ordem, lei e direitos de propriedade; o estado possui múltiplos conteúdos funcionais incluídos nos seus organismos de poder. É esse poder que permite ao estado impôr a segurança pública e defender os direitos de propriedade, possibilitando-lhe também confiscar a propriedade privada e até violar os direitos dos seus cidadãos. A Política Moderna objectivou direccionar as actividades do poder do estado para fins “legítimos”, regulando a prática do poder através da criação de um estado de direito; contudo, esta “modernidade”, defendida pela maioria dos países liberais do ocidente, tornou-se bastante difícil de obter em muitas sociedades. Fukuyama (2004), afirmou ser fundamental separar a força do poder do estado, a capacidade de executar políticas e obter transparência no cumprimento das leis - capacidade institucional ou estatal - das variadas funções e intenções seguidas pelos governos; as instituições públicas variam em conteúdo funcional - funções mínimas (bens públicos essenciais, defesa e segurança), funções intermédias (educação, ambiente e segurança social) e funções activas (política industrial, redistribuição da riqueza, etc.). 

Adão e Silva (1997) identificou nos estados modernos, a relação Estado/Indivíduo sob três formas: (i) os indivíduos são criadores e depositários de soberania, concedendo ao Estado os fundamentos e instrumentos de autoridade legítima. Através de um contrato social, os indivíduos transferem para Estado parte da sua autonomia, assegurando uma coexistência pacífica entre eles; (ii) a “transferência” concede ao Estado o monopólio quer da execução de leis, quer da violência legítima, e os indivíduos em consequência, tornam-se potenciais alvos de coerção estatal; (iii) os indivíduos dependem das provisões organizadas pelo Estado, sob a forma de serviços e bens assegurados publicamente. Desta forma, o Estado moderno foi transferindo a fonte da sua autoridade para os indivíduos, através do direito de participação do poder político, quer por se ser eleitor, quer por se poder ser eleito. 

A Cidadania em Portugal

A história da cidadania em Portugal exibe contradições, a nacionalidade foi acessível aos residentes no território nacional e especialmente aos seus descendentes nascidos neste território, mas nunca foi fácil para os nacionais obter a plena cidadania, particularmente o direito político de eleger e ser eleito para órgãos de soberania. Em 1820 foi negado o direito de votar aos membros das ordens religiosas, aos mendigos e aos criados, em 1822 chegou a vez dos analfabetos, ou seja, a maioria dos homens adultos (Santos, 1990, citado por Ramos, 2004, p. 550); para esta exclusão argumentou-se que só a educação formal podia gerar nos indivíduos um sentimento de preocupação pelo bem comum (Garrett, 1991, idem).

Em 1821, os autores do periódico “O Cidadão” propagaram a ideia de que sem um “Estado livre” não podiam existir cidadãos (Vargues, 1997, idem, p. 549). Os liberais ansiavam por construir o “Estado livre”, dotando a monarquia de uma constituição escrita que atribuía o supremo poder do Estado a uma assembleia legislativa eleita pela “nação”; no poder, os liberais insistiram mais nos deveres do que nos direitos. O primeiro dever, segundo as Cortes Constituintes eleitas em 1820, consistia no juramento da Constituição; para os refractários, a pena a aplicar seria a saída do reino, ajuizando que os portugueses ao não aceitarem a Constituição feita pelas Cortes renunciariam à nacionalidade. (Ramos, 2004, p.550) 

Em 1822, a primeira Constituição do Reino de Portugal aclamou a cidadania dos portugueses, expressando a vontade liberal de romper com o passado; antes da Constituição, os portugueses não eram cidadãos indiferenciados mas membros de distintos corpos sociais, aos quais o rei garantia diferentes privilégios e liberdades de acordo com a lei natural e tradição. Na velha monarquia, antes de 1820, não existiam direitos universais, nem a nacionalidade por si mesma, tinha origem em um estatuto; para os que não pertenciam à nobreza ou ao clero, o estatuto era adquirido através da vizinhança de residência numa certa comunidade, habilitando o indivíduo a usufruir dos direitos dessa comunidade (Moura Ramos, 1984, citado por Ramos, 2004). O cidadão, para além da fidelidade à lei, também era definido pela “independência” pessoal; embora a Constituição declarasse que todos os portugueses eram cidadãos, nem todos os portugueses detinham o direito que os liberais consideravam o privilégio “maior” do cidadão, o direito de eleger e ser eleito para a assembleia soberana (Garrett, 1985, citado por Ramos, 2004, pag. 550). Os analfabetos, pela sua ignorância, seriam susceptíveis de manipulação e por isso as suas escolhas não poderiam ser consideradas produto da sua própria vontade; equiparavam-se a frades e monges, sujeitos aos seus superiores, e aos criados, submetidos aos seus patrões, não possuidores de capacidade para uma vida autónoma e independente (Vieira,1992, citado por Ramos, 2004).

Os rendimentos dos empregados traduziam a sua dependência e apenas os rendimentos provenientes da propriedade individual garantiam a “independência” (Dias, 1978, idem, pag. 551). O acesso à educação formal dependia da posse de bens e rendimentos suficientes para que o indivíduo se permitisse a “ociosidade” fundamental à instrução; assim, os rendimentos de cada indivíduo compunham a sua capacidade para a cidadania (Garrett, 1991; Vargues, 1997; idem, p. 551). Nesta linha de pensamento, a “capacidade censitária”, sob a definição de cidadão liberal, derivava da preocupação com a “independência” pessoal, e não como resultado do suporte de um determinado sistema económico; os liberais portugueses preconizavam que “só o que possui renda necessária para existir independentemente de toda a vontade estranha pode exercer os direitos da cidade” (Praça, 1997, idem). Mesmo com a substituição da instrução pelo rendimento, como critério de obtenção do estatuto de cidadão capaz de eleger e ser eleito para cargos políticos, nem todos os rendimentos estabeleciam a capacidade suficiente par o efeito; em 1852, os empregados do Estado classificados como “amovíveis”, foram privados do direito de voto. (idem, idem) 

O sufrágio universal difundia-se na Europa ocidental e após desenvolvimento precoce na década de 1870 em Portugal, o direito de votar foi restringido na década de 1890 e novamente em 1913. O sufrágio universal para adultos do sexo masculino e feminino, sem restrições socialmente significativas, só foi aprovado pela primeira vez em 1974; os motivos alegados para a restrição cívica em Portugal foram a natureza rural da sociedade portuguesa, que resultaria a nível político num sistema de grupos de interesse ou lobbys , com clientelização das massas e atribuiu-se também ao Estado Novo (1933-1974) a suspensão, por motivos doutrinais e repressivos. (Ramos, 2004, p. 547) 

Democracia e civismo

Muitos liberais criticaram o Estado monárquico, já que Portugal não era ainda um “Estado livre”, onde os “homens livres” fossem a maioria; convinha manter as estruturas que asseguravam o predomínio político dos “homens livres” sobre o resto da população (Praça, 1997, citado por Ramos 2004, p. 558). Existiam no entanto liberais, que se consideravam “democratas”, só que a sua democracia não significava a extensão do direito de sufrágio à população. A democracia importava-lhes políticamente, apenas como um processo de transformação colectiva; a forma mais segura de incitar a mudanças nas massas era a “revolução”, a destruição das tradições e instituições antigas, esperando-se o reencontro da população com o seu próprio poder, para uma nova identidade colectiva enquanto nação soberana. Os democratas abdicaram da “revolução”, integrando a classe política liberal no contexto da Regeneração de 1851 (Ramos, 2003b, pp. 194-198) e (Ramos 2004, pag. 558); limitados ao legalmente permitido na ordem existente, a extensão do sufrágio fez-lhes sentido. 

A ida à urna como exercício da soberania podia ser entendida como educação cívica, uma “revolução” legal; foi esta a posição da “esquerda da monarquia” na segunda metade do século XIX. Apostaram na extensão do sufrágio a todos os homens adultos chefes de família; presumiu-se que a capacidade para manter uma família era o sinal daquela “independência” que até aí tinha sido comprovada pelo rendimento e pela instrução (Mónica, 1996, citada por Ramos 2004, p. 558). Os analfabetos, repentinamente convertidos, não foram promovidos à cidadania plena; continuaram a ser excluídos do serviço de jurados em tribunal (Praça, 1997, citado por Ramos 2004, p. 558). A extensão do sufrágio não obteve os resultados aguardados pelos democratas; atribuiu-se à lei a responsabilidade de sufoco do voto dos cidadãos verdadeiramente “independentes”, no mar inculto das massas “dependentes”, sujeitas aos dirigentes e à manipulação administrativa (Ramos, 2003b) e (Ramos 2004, pag. 559). 

Entendeu-se que a entrada da população em terrenos reservados aos cidadãos deteriorou a comunidade política; em 1895, para erradicar esta “fonte de corrupção eleitoral” aboliu-se a chefia de família como condição satisfatório para direito ao sufrágio. O insucesso da democracia eleitoral conduziu muitos liberais sintonizados com a renovação liberal em curso em Inglaterra, a focar-se nas condições sociais da democracia e no papel do Estado na concepção dessas condições, por via da educação pública, segurança social e regulação do trabalho e da empresa. Oliveira Martins[1] distinguiu-se nessa rectificação do liberalismo relativamente ao Estado assistencialista; sempre existiram planos liberais de integração das populações empregando o poder político para as munir de instrução, propriedades, crédito barato, empregos protegidos (proteccionismo alfandegário) ou práticas de associação. Nova era a ideia de um tipo de cidadão cuja independência pessoal não dependia da propriedade individual, mas do poder do Estado que continuamente o assistiria. Os liberais não detinham a crença na propriedade; a propriedade foi a garantia das condições de independência do cidadão. O Estado apresentava agora condições para o exercicío dessa função; contrariamente ao Estado da antiga monarquia, o Estado liberal materializava a nação, quem dependesse do Estado não dependia de ninguém mas da nação, ou seja, de si próprio; noutra perspectiva, os intelectuais liberais delineavam programas de nacionalização das massas que influenciariam a política cultural dos regimes portugueses do século XX.

Assim, o plano cívico liberal promoveu a socialização e nivelamento das populações; garantiu direitos, pretendeu desenvolver uma identidade colectiva de culto da pátria e de um modo de vida definido pela instrução civil, de acesso à propriedade ou no apoio do Estado. (Ramos, 2004) 

Cidadania e estado cívico

A cidadania concebida no projecto cívico liberal, apartada de princípios de inclusão e integração, categorizou a vida pública, desagregou os portugueses que tinham o direito ao exercicio do poder político e os portugueses reduzidos à passividade; os liberais sempre tiveram consciência das consequências do princípio da cidadania que excluiam parte da população da esfera pública e em 1851, Herculano[2] reconheceu que a revolução liberal apenas substituiu um grupo de elites por outro. A elite liberal afirmava-se “elevada da massa geral” do povo, únicos num interesse real na independência e progresso da nação, diante da indiferença e hostilidade da restante população (Herculano, 1983-1986; Praça, 1997, citados por Ramos, 2004, pag. 556). O analfabetismo, apesar da educação obrigatória e gratuita do Estado na década de 1830, instruíu os políticos liberais da relutância ou incapacidade da população rural (a maioria dos portugueses) para incorporar a comunidade cívica; os liberais passaram a ver o Estado não como modelo de uma nação antecessora mas como um instrumento de criação de uma nova nação, advinda de uma essência de camponeses supersticiosos e pouco patrióticos. A necessidade de libertar a pátria da ignorância e do atraso fundamentava o uso do poder do Estado na transformação da vida dos portugueses; as vítimas foram a aristocracia da corte e a Igreja católica, com os patrimónios expropriados e vendidos aos seguidores da causa liberal (Monteiro, 2003; Neto, 1998, citados por Ramos, 2004, p. 556). Não foram respeitados os costumes e privilégios tradicionais da restante população, estatizando e reordenando socialmente; o Estado apropriou-se de terras e bens tradicionalmente sujeitos ao regime de usufruto colectivo e incitou à partilha por particulares (Castro, 1971, citado por Ramos, 2004). Magistrados nomeados pelo governo substituíram os juízes de paz eleitos pela população (Praça, 1997, vol. II, idem), retiveram-se passaportes para demover os camponeses pobres da emigração (Praça, 1997, vol. I, idem) e já desde a década de 1820 havia sido adiado o julgamento por júri porque não se considerava o povo com educação suficiente para idêntica instituição. (Raposo Costa, 1976, idem) 

Estas políticas de suspeita das capacidades da sociedade e suas tradições conduziram a consequências debilitantes a nível da instrução, com a proibição de ensino decretada à Igreja católica, que estabeleceu um dos factores do elevado analfabetismo português, pois o Estado nunca deteve recursos financeiros e humanos para concretizar um programa de educação popular (Ramos, 1998a) e (Ramos, 2004, p. 557). Noutra vertente, os liberais, não adeptos da veneração tradicional pela dinastia e Igreja, usaram o clero e a monarquia, como instrumentos de controle popular; o Vaticano viu no acordo com o Estado português a forma de defender os seus interesses em Portugal (Neto, 1998, citado por Ramos, 2004) e parte da família real portuguesa já havia eleito a causa liberal na década de 1820, permitindo aos liberais, dar ao seu “Estado livre” a estrutura da antiga monarquia, com igreja oficial, constituição monárquica e nobreza titular (Ramos, 2001a) e (Ramos, 2004, p. 557). Contudo, existia um funcionamento monárquico do poder; o rei detinha o poder constitucional para nomear o chefe do governo e controlar o parlamento (através do veto e dissolução). Os direitos régios determinaram o corte entre a política da elite liberal e a população; as mudanças no governo determinavam-se por intrigas dos líderes liberais em torno do rei, e não por resultados eleitorais ou manifestações. O rei representava a garantia dos “homens livres”. (Ramos, 2001b, pp. 52-54) e (Ramos, 2004, p. 557)

Liberalismo e cidadania

Os liberais sustentaram na dimensão pública variadas opiniões e organizações, procurando consensos por via do debate e da controvérsia; a nível estatal acreditaram na divisão de poderes impeditivas do autoritarismo. Daí, o “paternalismo administrativo”; o constrangimento aos não livres para se tornarem livres, não significou uma mera relação de poder entre Estado e Sociedade, mas numa relação complexa entre o Estado e diferentes grupos e regiões. A I República (1910-1926) deteriorou os avanços conseguidos no domínio da esfera pública; os líderes do Partido Republicano Português (PRP) ostentaram-se, antes de 1910, como recordistas dos direitos de cidadania, contudo, situaram-se sempre entre o ideal do Estado democrático de direito, e a natureza do regime de poder do Estado, por um partido revolucionário (Ramos, 2003a) e (idem, p. 560); defendendo o monopólio do Estado, desampararam ou demarcaram a maioria das exigências que incitou a sua batalha legal durante a monarquia. Pelo atraso do país e ignorância da população, os deputados acordaram que o sufrágio universal e o municipalismo só favorecereriam padres e lavradores “reaccionários”, controladores da população da província (Actas de 1911, 1986, idem, idem); em 1913, os analfabetos foram privados do direito de voto. A expansão dos direitos civis das mulheres, enquanto proposta, também foi negada na justificativa de que “as mulheres, em geral, são reacionárias” (idem, idem, idem, p.561). O receio de que inimigos do regime utilizassem os direitos e garantias fez com que observassem as sua regras limitativas, o caso do habeas corpus (idem, idem, idem); a autonomia do poder judicial também foi questionada, no pretexto de salvaguardar o regime de magistrados desafectos (idem, idem, idem). Todas as restrições foram fundamentadas pela expressão da cidadania do projecto cívico liberal; o preceito liberal onde a habilidade civil não implicava a aptidão política validou a limitação do direito de sufrágio (idem, idem, idem). O direito de voto subordinava-se ao “desenvolvimento pleno da razão”; a República era o desempenho colectivo da razão, e aos poderes públicos incumbia a exclusão dos incapacitados para o exercício (Costa, 1976, citado por Ramos, 2004, p. 561).

Os líderes republicanos compreendiam a República democrática porque, ainda que minoria no país, constituiam a maioria patriótica entre os portugueses aptos pela capacidade e devoção cívica para governar o país (Actas de 1911, 1986, citadas por Ramos, 2004); a “nação soberana” não era igual à população residente dentro das fronteiras da República. A tradição cívica explicou o afastamento do regime do modelo do Estado de direito e desinteresse do plano de um Estado social (Ramos, 2003a) e (Ramos, 2004, p. 561); para os republicanos, o cidadão era melhor definido pela obediência dos deveres patrióticos, do que pelo gozo de direitos civis ou sociais (Actas de 1911, 1986, idem, idem). Para incorporar os não-cidadãos acreditou-se na escolarização, nas liturgias públicas do regime e na universalização do serviço militar obrigatório. (Ramos, 2001a, idem, idem, idem) 

Embora permitida a representação parlamentar de outros partidos, o PRP[3] nunca acolheu uma rotação pacífica no poder, como durante a monarquia constitucional; a participação eleitoral desabou (Ramos, 2003a) e (Ramos, 2004). Competiu à “direita republicana”, “monárquicos” e “católicos” o papel desempenhado pelo PRP antes de 1910, de impor o respeito pelos direitos e garantias e o sufrágio universal (Lopes, 1994, citado por Ramos, 2004, p. 561). Com o golpe de Estado de 1917 expulsando o PRP do poder, a coligação conservadora declarou o sufrágio universal masculino, suprimido imediatamente pelo PRP no seu retorno ao governo em 1919 (Santos, 1990, citado por Ramos, 2004); a ditadura militar de 1926 recorreu à “maioria dos portugueses”, dilatando o direito de sufrágio e esforço de recenseamento, desfavorecendo o PRP. (idem; Cruz, 1988, idem, idem, p. 562) 

Dirigindo a ditadura, Salazar pretendendo mais que votos, apostou no “positivismo” comunicando um novo regime fundado na “constituição natural da sociedade”; substituiu o “cidadão abstracto” por “grupos naturais” e “associações morais e económicas”. Os indivíduos contavam como existiam, ou seja, como membros de famílias, comunidades de residência e classes profissionais (Salazar, 1939, idem, idem, idem); a nova classe política salazarista, conquanto oriunda do meio de profissionais liberais e burocratas que tinha governado o Estado sob a monarquia e a I República (Schmitter, 1999, , citado por Ramos, 2004, p. 562), separou-se da forma como liberais e republicanos fizeram política. No parlamento, os salazaristas consideraram seu dever fazer “trabalho útil”, auxiliando o governo com os seus conhecimentos técnicos, não subordinando a acção dos ministros ao debate dos princípios e averiguação dos procedimentos, o que sempre lhes aparentou favorável a “abusos e obstrucionismo”. (Ramos, 2004, idem) 

A década de 1930 separa o Estado Novo da tradição de cidadania reconhecida pelos liberais e republicanos; contudo, os recursos preditos eram desactualizados e os salazaristas reclamavam. Os liberais já tinham referido a municipalização como nova configuração de cidadania e foram discutidas medidas de actuação política fundamentadas nas actividades profissionais (Ramos, 2001b) e (Ramos, 2004); na verdade não existiria reestruturação no Estado português segundo os princípios corporativos, a actuação política, continuou acordada através do sufrágio individual directo (Vital, 1940; Lucena e Gaspar, 1991, citados em Ramos, 2004). O grupo político desistiu do “hipercriticismo”, gosto pela “controvérsia” e “oposição” produzidos pelas “ilusões liberais” e “espírito partidário” (Pereira, 1937, idem, idem, p. 563), abandono explicado patrioticamente com carácter devoto do bem comum e não como prémio de posição natural ou social; Salazar, com exposições neutras de teor religioso(Gil, 1995, idem, idem, idem), não dispensou o patriotismo cívico, descrevendo a União Nacional[4] como “escola para cidadãos” (Salazar, 1939, citado por Ramos, 2004, p. 563).

Independentemente dos fins corporativos do regime, os “elementos da nação” (partidos, grupos, classes) consideravam os negócios públicos sob os seus “interesses” particulares; o governo cuidava do “interesse nacional”, esperando a solidariedade dos “homens de boa vontade” (idem, idem, idem). Mesmo com a organização da população em grupos corporativos no exercício de interesses concretos, o Estado prosseguiu no apelo à devoção do indivíduo separado de interesses particulares, pelo bem comum, representação do cidadão na tradição liberal. 

A aculturação da sociedade portuguesa pelo governo liberal revelou a eficácia da expressão cívica na legitimação dos actos do poder; Marcello Caetano[5] achou sempre o liberalismo “individualista” do século XIX desactualizado, enquanto deliberação política, mas a sua percepção de liberdade como “a faculdade que se reconhece às pessoas de obedecerem às leis, mais do que aos homens” tinha origem “liberal”. Numa sociedade carente de “arreigadas tradições de civismo” os “órgãos e agentes da autoridade” não podiam ser “meros espectadores da actividade dos cidadãos” (Caetano, 1971, citado por Ramos, 2004, p. 563); o acto assistencialista do projecto cívico era flexível à prática autoritária e assim o Estado Novo foi apresentado como “compromisso entre soluções socialistas e soluções liberais”, na percepção das “obrigações para com os cidadãos”, munindo cada um de bases materiais e culturais para sem privações, “participarem na vida pública do país”.

O “poder político” não seria apenas “o simples guardião das liberdades cívicas para se tornar o gestor dos serviços que fazem chegar à generalidade das pessoas aquilo que por seu exclusivo esforço não obteriam” (idem, idem, p. 564); os projectos de promoção cívica e assistência social vividos pelo Estado, para Caetano constituíam a “colaboração com a administração na realização do bem comum” Baptista, 1973, idem, idem, p. 564), ou seja, o regime, em Caetano, era um tipo de “escola de cidadãos”. 

Estado-Providência

Ao longo dos tempos, os diversos e históricos arranjos institucionais constituíram os Estados-Providência. “ (…) a protecção social impôs-se gradualmente como uma componente fundamental do modelo de sociedade europeu, ancorando nos valores partilhados da justiça social, igualdade, segurança e liberdades positivas” (Ferrera, 2000); como sistema de estratificação, desempenha um papel activo no ordenamento das relações sociais, contribui para a definição do próprio estatuto social dos individuos e sua identidade (Adão e Silva, 1997) 

Foi após a Segunda Grande Guerra Mundial que se ampliou o Estado Providência no mundo ocidental, apresentando-se como instrumento eficaz para a pacificação social e um factor de crescimento económico; foi defendido por democratas cristãos, sociais-democratas e trabalhistas (Adão e Silva, 1997). Apontou para a intervenção na orgânica e funcionamento das sociedades, caracterizando-se por deter uma atitude transformadora no domínio das políticas económicas e sociais. ( Esping-Andersen, 2000) defendeu dois tipos de abordagem que descrevem a procedência do Estado-Providência; uma centrada nas estruturas e sistemas, outra nas instituições e actores. Na primeira abordagem, os modelos estatais evoluem respondendo aos requisitos de reprodução da sociedade e economia, onde se verificam três variantes: (i) o processo de industrialização tornou as políticas sociais não só necessárias como possíveis; (ii) o Estado-Providência foi possível devido ao crescimento da burocracia enquanto forma de organização racional, gestão de bens colectivos e enquanto centro de poder, com tendência de reprodução, promovendo o próprio crescimento; (iii) o Estado-Providência é produto do modo de produção capitalista, inevitável, na medida em que a acumulação capitalista cria contradições que requerem uma intervenção política autónoma. 

A segunda abordagem sustenta que, a defesa dos mercados face à intromissão da política coloca em risco a própria sociedade, pelo que as políticas sociais são uma précondição necessária para a reintegração social da economia (idem, idem, citado por Adão e Silva, 1997). A partir do impacto petrolífero de 1973 o consenso sobre este modelo político terminou, pela sua rigidez e justo crescimento dos direitos sociais; o Estado-Providencia espelha o Estado Moderno nas sociedades democráticas de capitalismo avançado; a integração de novas gerações de direitos de cidadania é inevitável e produz profundas alterações na estrutura da sociedade (Adão e Silva, 1997).

Assim, o papel do Estado modificase, evolui e transforma-se, basendo-se no cumprimento dos direitos sociais e propensão para a decadência de algumas políticas sociais e económicas relativas ao sistema de intervenção do Estado-Providência (idem). Mozzicafreddo (2000) alerta para a necessidade de ter em conta a estrutura e funções do Estado-Providência, atentando na questão da Concertação Social, centro do modelo de Estado-Providência; a Concertação Social, é importante para compreensão do sucesso das funções do Estado-Providência e alcance da sua inadequação face aos problemas actuais da sociedade, reorientando as políticas das suas funções “enquanto agente coordenador e dinamizador do desenvolvimento da sociedade”. (Mozzicafreddo, 2000, p. 2)

Do Modelo Social Europeu

Surgiu após a segunda guerra mundial com o objectivo de reforçar a dimensão social da Europa, organizando um Espaço social Europeu; através dele, a União Europeia obteve maior prosperidade económica e justiça social. Na União Europeia, distinguem-se quatro modelos de política social. (i) Modelo Nórdico: apresenta altos níveis de despesa em protecção social e serviços públicos de cobertura universal, financiados por impostos elevados; promove políticas activas de emprego e tem um nível de desemprego reduzido. (ii) Modelo Anglo-Saxónico: verifica-se a distribuição desigual de rendimentos, com ajudas apenas para os mais carenciados; o acesso a subsídios de desemprego está condicionado pela permanência num emprego regular. Promove um nível de vida mínimo.(iii) Modelo Continental: a segurança social é financiada pelas contribuições dos rendimentos salariais de todos os cidadãos no activo; promove subsídios públicos universais, subsídios de desemprego e pensões de reforma. (iv) Modelo Mediterrânico: promove a protecção social e garante protecção jurídica no emprego, mas o subsídio de desemprego apresenta valores mais baixos; investe em reformas antecipadas. (Adão e Silva,1997) 

Os direitos sociais

O conceito de direitos sociais integra a “igualdade democrática” porque o critério de necessidades básicas sustenta um princípio geral de distribuição e porque a concepção dos direitos sociais é derivada do conceito de necessidades básicas (Plant, sem data, citado por Espada, 1997) e Espada (1997), considera que os direitos sociais básicos devem garantir que ninguém será privado de bens básicos. É dever da sociedade fornecer bens básicos àqueles, e só àqueles, que não os têm, num conceito de fornecimento intencional, não à margem do mercado, mas fornecendo às pessoas os meios que lhes permitam aceder ao mercado. Na impossibilidade de provar que os serviços sociais vão produzir serviços melhores do que os já existentes no mercado, esta seria a melhor forma de implementar os direitos sociais. As políticas sociais deveriam dirigir-se directamente àqueles que precisam, proporcionando a sua entrada no mercado consumindo bens básicos, normalmente produzidos por empresas privadas concorrentes entre si, em vez de substituir este fornecimento do mercado pelo fornecimento do Estado. Espada (1997, p. 284) argumenta que “os direitos sociais de cidadania não visam atingir um igual valor da liberdade, mas apenas garantir o acesso universal ao valor da liberdade” e que a concepção dos direitos sociais implica também um princípio de igualdade já que todos os cidadãos têm o mesmo direito de acesso ao valor da liberdade, ou têm o mesmo direito à satisfação das suas necessidades básicas; este direito igual não diz respeito aos resultados mas ao acesso. 

Deve falar-se de universalidade, em vez de igualdade porque à igualdade dos direitos sociais corresponde a universalidade dos direitos sociais. Numa sociedade justa e em evolução, dinâmica e motivada, o grande objectivo dos direitos de cidadania deve caminhar no sentido de promover oportunidades, para que todos se sintam motivados; não deve passar pela preocupação de evitar a desigualdade mas no sentido de evitar a exclusão das oportunidades. 

Justiça Social

Ao observar a literatura recente sobre justiça social, encontram-se declarações de que está cada vez mais desligada das realidades políticas. As noções de justiça, incluindo a distributiva, foram utilizadas e debatidas por filósofos, desde o tempo de Aristóteles; o conceito de justiça social só sobressaiu relativamente tarde. É utilizado irregularmente por vários autores do século XIX nas suas análises sobre a ética do sistema económico e social dominante; no debate de temas como a justificação da propriedade privada ou a melhor forma de organização económica, recorria-se a ideias de justiça distributiva e aplicava-se a expressão “justiça social”, sem consciência da importância do conceito (Miller, 1998, p.324). A aparição de movimentos socialistas, pretendentes reais ao poder político foi determinante para o desenvolvimento das ideias de justiça social, compelindo os liberais a um olhar mais critico para a propriedade da terra, a propriedade privada da indústria, a riqueza por herança e outras características do capitalismo e a pesquisar os sistemas de organização industrial socialistas e comunistas que estavam a ser sugeridos (Miller, 1998). As teorias sobre justiça social só iniciaram verdadeiramente nos primeiros anos do século XX, atentando que em períodos de soberania popular é inevitável que as instituições sociais e económicas sejam sujeitas a avaliação crítica, questionando se os indivíduos são tratados com justiça (Miller, 1998). A procura da justiça social é um efeito natural do desenvolvimento da instrução: “Os povos de todos os países civilizados estão a submeter as suas condições sociais e económicas às mesmas provas de equidade e de justiça com que já questionaram no passado a legitimidade das instituições políticas.” (Miller, 1998, p. 325)

Alguns autores deste período utilizam uma concepção orgânica da sociedade, encarada como um organismo em que o “desabrochar” de cada um dos seus constituintes requer a afluência de todos os outros, comportando o objectivo da justiça social delimitar os arranjos institucionais, consentindo a cada pessoa contribuir totalmente para o bem-estar social; os princípios de necessidade, abandono e igualdade avaliam-se nesta perspectiva, através de uma visão idealista (Miller, 1998, p. 326). A noção de justiça social assumiu concepções sobre ordem social, debruçando-se sobre um conjunto de pessoas entre as quais se podem fazer comparações: (i) Uma sociedade com determinada composição, constituindo um universo de distribuição, com equidade ou iniquidade, utilizando a comparação do que diferentes indivíduos recebem: por que tem A direitos que B não tem, por que é o rendimento de C ser mais alto do que o de D, etc (Miller, 1998, p.326).

Contudo, as teorias da justiça restringem-se a comunidades de pessoas políticamente organizadas, ou seja, Estadosnações; o conceito de equidade distributiva funciona apenas se as pessoas observadas estiverem ligadas entre si (Miller, 1998, p.327). (ii) A concepção deve utilizar um conjunto de instituições responsáveis pelas oportunidades de vida de diferentes indivíduos; as primeiras teorias de justiça social resultantes dos manuais de economia política do século XIX, explicavam a divisão do produto social por condições como a terra, capital e trabalho. As leis sociais determinavam os resultados da distribuição e permitiam o resultado da transformação de uma instituição. Ex: passar a terra para a propriedade pública (Miller, 1998, p. 328). (iii) Existem organismos competentes para alterar a estrutura institucional no sentido da teoria preferida; o Estado é o principal. (iv) A teoria pode edificar o fundamento de um consenso político entre cidadãos e comunidade política; se um Estado democrático for o principal regulador e as suas acções espelharem a vontade dos cidadãos, as teorias de justiça devem aspirar à aceitação popular e não sómente à da elite política (Miller, 1998, p. 328). No mundo actual questionam-se estas concepções. Com a globalização vivemos em comunidades políticas diferenciadas, as relações com os outros membros diferem das mantidas com pessoas do exterior, as identidades e as lealdades complexificaram-se; as identidades fragmentaram-se segundo grupos étnicos, regiões, filiações transnacionais, etc. (Miller, 1998) 

A justiça social solicita a submissão da estrutura fundamental aos ditames da ética, norma de salário igual para trabalho igual; não se compreende em teoria nem controla na prática, o grupo de instituições que determinam os rendimentos individuais. Assim, não se podem aplicar as normas. O Estado cada vez tem mais dificuldade em moldar as instituições de acordo com as imposições da justiça social; todo o desvio dos dogmas de economia de mercado livre é susceptível de contra-indicação; existem previsões de que o Estado como entidade unitária se diluirá, trocado por uma multiplicidade de instituições fornecedoras de serviços por contratação. Noutras visões, é a multiculturalidade das sociedades contemporâneas que impossibilita o acordo acerca da justiça social (idem). Ainda sobre justiça social, que tradicionalmente se preocupava com questões de justiça na distribuição de bens materiais e com a forma como as instituições económicas e sociais repartiam a liberdade, propriedade, riqueza e o rendimento pelos diferentes grupos sociais, conforme se ampliava o papel do Estado, acrescentou-se à lista o acesso à educação, assistência médica e pensões de velhice. No entanto, nas sociedades multiculturais, a acepção política de distribuição material é transferida para temáticas de reconhecimento cultural; os indivíduos preocupam-se menos com as desigualdades de riqueza e rendimento e preocupam-se mais com a forma como as identidades culturais são reconhecidas e promovidas pelo Estado; indubitavelmente continuam a ser objectos de justiça, mas não de justiça distributiva.


Assim, a questão não é o consenso sobre a justiça social, mas esta, no seu entendimento tradicional, ser objecto de menor relevância para os grupos em que a inquietação primeira é a luta pelo reconhecimento cultural (idem). Se as nações abdicarem da primacia da justiça, a justiça étnica, regional e transnacional surgirão contrariedades; os diferentes grupos de interesses antepõem-se e obstruem-se. A repartição de benefícios ou bens essenciais a receber, subordinada a mecanismos de variadas instituições, sem uma entidade única a gerir o todo, significa deformidades; sistemas de justiça rivais só coexistem quando perfilhados por grupos autónomos, desconhecendo a situação uns dos outros. (idem) 

O Estado-nação está decadente, como fonte de identidade e sede de justiça; a procura de justiça social e o destino do Estado-nação estão intimamente unidos. Se o Estado-nação se dissipar na memória, a justiça social desaparece com ele, o que não significa que a estrutura institucional do Estado-nação deva manter- se tal como é agora; a estrutura tem vindo a alterar-se apressadamente, principalmente porque algumas das funções tradicionalmente concretizadas a nível nacional são subdelegadas a organismos regionais e supradelegadas a organismos transnacionais. Todavia, o Estado-nação continua a deter a legitimidade política, é nele que os cidadãos aguardam por justiça, seja pela atribuição de recursos e fornecimento de serviços, seja pela tutela dos organismos subordinados ou negociação com outros Estados, da harmonização internacional da legislação e políticas sociais; mesmo em caso de delegação de funções ou privatização de serviços, os cidadãos atentam ser do governo nacional a responsabilidade de tutelar essas actividades, de intervir e conciliar. Isto, porque os Estados continuam a controlar os territórios, reivindicando o monopólio do emprego legítimo e da força física nesses territórios; os Estados provêem a segurança física elementar, factor relevante para a generalidade dos indivíduos, porque não existe outra escolha senão ficar no território de origem. A representação de indivíduos com liberdade de eleger os locais de residência aplica-se a uma reduzida parcela de indivíduos bem pagos e não ancorados a laços sociais ou familiares regionais. (idem) 

As garantias democráticas do Estado induzem os indivíduos a acreditar na responsabilidade estatal quanto a oportunidades de vida e a mostrar desagrado por via do sistema eleitoral; nenhuma instituição possui este grau de legitimidade democrática (idem). As identidades nacionais sob o conceito de comunidade inclusiva onde a prática da justiça social pode continuar, dissipam-se, pois os indivíduos identificam-se mais com a família, local de trabalho, clube de futebol ou igreja local, em detrimento de outros grupos ou instituições; no que respeita à justiça distributiva, a posição das comunidades nacionais é impressionável por desigualdades entre indivíduos de diferentes partes do seu país, mostrando-se menos às desigualdades internacionais semelhantes. O quadro apresentado é o de um capital internacional mutável e selectivo dos locais de produção numa lógica simples de custobenefício, optando por alojar-se em regimes de baixa tributação e mercado livre; em oposição, para existir produção com êxito é indispensável a força de trabalho instruída e motivada, meio social seguro, cuidados de saúde de qualidade, etc. Relativamente ao dilema que o multiculturalismo coloca à justiça social, a questão não é, os diversos grupos serem atraídos para distintos princípios, mas onde as identidades de grupo se fortalecem em detrimento do alcance das identidades nacionais, a dificuldade de motivação dos indivíduos para ampliar o universo da distribuição, incluindo nele membros de outros grupos; o alvo da justiça distributiva tende a contrair-se, as pessoas tornam-se indiferentes ao tratamento dado aos que são exteriores ao grupo (idem). Se as identidades de grupo se “cristalizassem” e os indivíduos abandonassem o sentimento de comunidade com membros de grupos de cultura concorrente, seria penoso chegar a acordo sobre políticas de justiça social de um grupo para outro, especialmente quando isso incluísse a redistribuição visível de recursos de um grupo para outro. (Miller, 1998, pp. 336 e 337) 

O principal entrave à justiça social nas democracias liberais desenvolvidas é político; a questão é mobilizar um consenso político a favor da justiça, que modele a forma dos indivíduos operarem como votantes, actores políticos, activistas políticos, etc. O problema é as pessoas colaborarem para situar os princípios a praticar, num meio social que tendencialmente camufla os laços que nos unem (idem). Ainda vivemos as “circunstâncias de justiça social”; continuam a ser relevantes os efeitos distributivos de uma estrutura institucional sobre as diferentes oportunidades de vida de uma comunidade nacional, continua a ser plausível acordar sobre os princípios que devem reger essa estrutura institucional, continuando a produzir teorias da justiça que exibam tais princípios. O dilema constitui a transformação desse acordo teórico em acção prática, exigindo que os membros da comunidade actuem juntos na procura da justiça, estejam eles directamente envolvidos no funcionamento das instituições, unicamente a pronunciar-se e a votar sobre questões políticas. É trabalhoso mobilizar as pessoas a favor da justiça numa conjuntura em que o sindicalismo é débil e em que as divisões culturais são salientadas; a cidadania representa um papel desempenhado por acréscimo aos cumpridos na economia e na sociedade civil. Os indivíduos têm ser estimulados a pensar como cidadãos, abordando as questões de justiça social como cidadãos responsáveis, legisladores da sociedade e não apenas representantes deste ou daquele grupo sectorial, cumprindo um papel activo nos variados cenários políticos a que têm acesso. Não é fácil conseguir este resultado, contudo, as perspectivas de justiça social estão estreitamente ligadas às de uma cidadania consistente; se desejamos a justiça social como ideal orientador nas democracias liberais desenvolvidas, é imperativa a vontade cívica de pensar e agir como cidadão a corpo inteiro. (Miller, 1998, pp. 338 e 339) 

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[1] Joaquim Pedro de Oliveira Martins foi um político e cientista social português. 

[2] Como liberal que era teve como preocupação maior, estabelecida nas suas acções políticas e seus escritos, sobretudo em condenar o absolutismo e a intolerância da coroa no século XVI para denunciar o perigo do retorno a um centralismo da monarquia em Portugal. 

[3] O Partido Republicano Português foi o partido que propôs e conduziu à substituição da Monarquia Constitucional por uma República Liberal Parlamentar, em Portugal.

[4] Constituída para apoiar a criação e a manutenção do regime político em Portugal com a aprovação da Constituição de 1933, o Estado Novo, foi o único partido político legalmente constituído, ainda que, segundo os seus estatutos (inspirados por Salazar), este agrupamento não tivesse o nome de partido, já que, segundo o seu criador, os partidos (que regeram a república até 1926) dividiam a sociedade portuguesa, ao passo que esta agremiação, pelo seu nome (União Nacional), se destinava a unir todos os Portugueses em seu torno. 

[5] Marcello José das Neves Alves Caetano foi um jurisconsulto, professor de direito e político português. Proeminente figura durante o regime salazarista foi o último Presidente do Conselho do Estado Novo.



By Fatma