Dar o peixe, ensinar a pescar ou remover os muros?

Identidades Profissionais do Serviço Social

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Analisando a trajetória profissional do Serviço Social Português observa-se que os movimentos que visam maior autonomia quer ao técnico, quer ao cidadão-utente são muito recentes. A história mantêm um apelo permanente ao papel de regulação social do assistente social, quer pela via mais reguladora, quer pela via emancipatória, que de acordo com Nunes (2004:44) só é possível se em termos da reflexão histórica da relação social com as formas de Estado o Serviço Social fizer “ (…) este caminho, incrementando dinâmicas de reflexividade que a partir da própria ação dos assistentes sociais se possa construir e organizar um pensamento que refletindo as contradições socais aí presentes se constitua em efetiva alavanca de emancipação”... Qual o caminho a escolher? Pela inovação e prática reflexiva? Pelo Equilíbrio/continuidade e prática reguladora? … a resposta a estas questões encontra-se no posicionamento biográfico e pessoal de cada técnico, como ser singular e coletivo que pode optar pelo posicionamento ideológico que mais se aproxima com a sua identidade herdada da profissão de Serviço Social. …O início do século XXI coloca novas exigências à profissão de Serviço Social para as quais os movimentos de “empowerment” e de “capacitação social” requerem novas estratégias de ação, novo reconhecimento e estatuto da população, bem como uma capacidade de aprendizagem reflexiva que não se coaduna com uma visão residual e casuística dos problemas sociais. É importante envolver o profissional de forma reflexiva na análise da sua trajetória pessoal e profissional e na formulação de respostas teóricas e políticas “de transformação societária, contribuindo para o redimensionamento da profissão na contemporaneidade” (Ianamoto, 2004: 148) ...os assistentes sociais lidam com uma ambiguidade decorrente, de vários fatores que os pressionam para o agir imediato e pragmático em detrimento da reflexão teórica e estratégica (Nunes, Mª 2004:229), o que não lhes permite explorar cabalmente o seu potencial reflexivo e as oportunidades que surgem no meio institucional; exige-se atualmente à profissão de Serviço Social uma nova visão do mundo “que emancipe o direito de cidadania dos sujeitos” (Ibidem: 253). É necessário que os assistentes sociais se consigam libertar de aspetos altamente distributivos e burocratizantes para os transformar em técnicas estratégicas baseadas num maior conhecimento científico, fruto de uma prática reflexiva e de uma permanente atualização para atingir os desafios do século XXI. 

… O seu trabalho está balizado por estes indicadores de resultados. Gosta do trabalho com a população-alvo que são as organizações e os parceiros sociais. Mantêm uma boa relação e partilha responsabilidades. Aos poucos vai perdendo os ideais de “querer mudar o mundo”. Afinal “temos que nos proteger”. No entanto ainda se lembra, com carinho, da entrega dos cabazes de Natal. Mas já não sabe o que aconteceu àquela família. Está a ser acompanhada por outro técnico. A teoria é importante mas de pouca utilidade. A teoria que lhe interessa, agora, é “os manuais da rede social”.

1. A identidade profissional do serviço social espelha as condicionantes históricas, económicas, políticas e sociais da sociedade onde se insere. Mas, não é só um produto dessas mesmas condicionantes. Reflete, igualmente, um processo ativo onde o assistente social assume responsabilidade nas respostas que vai construindo aos questionamentos sociais de cada período histórico. “A estrutura social não age unilateralmente sobre os agentes. Os atores sociais reproduzem ou transformam as estruturas sociais” (Nunes, Mª 2004:46); 

2. A identidade profissional do Serviço Social é prolixa. É segmentada de acordo com os diversos contextos onde se insere e com as especificidades desses contextos. No entanto possui elementos unificadores que se podem rever nos valores profissionais que defendem os direitos sociais e os direitos humanos e um ideal de justiça social, bem como num conjunto de instrumento técnico-operativos que lhe permite uma leitura apropriada da organização social e das políticas sociais subjacentes com as quais trabalha. “Os assistentes sociais têm a responsabilidade de assegurar aos sujeitos socialmente excluídos, a possibilidade de assumir de forma completa os seus direitos e deveres de cidadania” (Martinelli, 2004:249);

3. A identidade profissional do Serviço Social fundamenta-se, igualmente, na prática profissional dos seus agentes. Neste sentido, a prática profissional adquire uma conotação coletiva, no sentido em que é perspetivada como uma “síntese elaborada pelos profissionais, do pensamento historicamente construído pelos seus membros” (Baptista, 2001:55) e que dá significado e intencionalidade ao grupo profissional;

4. A identidade profissional do Serviço Social fundamenta-se num agir e num conhecimento permanentemente construído através da investigação e da reflexão sobre a prática. Estas reflexões capacitam o profissional a questionar o conhecimento, interrogando-o sistematicamente pela prática, na concretização de uma perspetiva crítica capaz de proporcionar uma teoria social;

5. A identidade profissional do Serviço Social é, igualmente, fruto do sujeito que a constrói e a vivência. Pelo que a identidade profissional do Serviço é, igualmente, uma construção pessoal e uma construção coletiva;

6. A identidade profissional do Serviço Social no contexto organizacional (contexto que enquadra usualmente a prática profissional) pode ser construída pelo modo de rutura ou de continuidade (Dubar, 2000; Rosa; 1998). O assistente social no seu processo de construção identitário deve encarar o contexto organizacional não como um campo unilateral da ação profissional, mas, igualmente, como objeto de intervenção, onde existem constrangimentos, mas também potencialidades à edificação do agir profissional;

7. A identidade profissional do Serviço Social encontra-se a atravessar um período de crescimento e de exigência da demarcação de posicionamentos profissionais. Neste novo perfil profissional exige-se um maior comprometimento do assistente social “capaz de sincronizar-se com o ritmo das mudanças que presidem o cenário social (…) e um profissional que seja capaz de ser um investigador, que invista na sua formação intelectual e cultural e no acompanhamento histórico-conjuntural dos processos sociais para deles extrair potenciais propostas de trabalho, transformando-as em alternativas profissionais” (Ianamoto 2004:145) ; este novo perfil profissional deve comprometer-se com uma prática crítica e reflexiva, exigindo ao profissional um “processo permanente de reflexão sobre o que faz e sobre aquilo que pensa que fez“ (Dominelli 2004: 250).

Mais do que as configurações identitárias relativas aos protótipos Humanista/Assistencialista e Humanista/Tecnicista, predominantes na atualidade, defende-se a emergência de uma nova possibilidade de identidade profissional, mais consentânea com os valores e realidades sociais atuais, a designar por identidade Humanista/Reflexiva que englobará o percurso e as condições, ao mesmo tempo que colocará novos desafios quer à prática profissional, quer aos organismos reguladores e formativos como o Estado, as Escolas e os contextos da prática profissional. Esta identidade exige a responsabilização do técnico no seu projeto ético-profissional, mas também potencializa um maior reconhecimento social e a existência de novos debates sobre o pensamento social do assistente social. A especificidade da identidade humanista/reflexiva baseia-se nas estratégias metodológicas de intervenção profissional que, como refere Fook (2002) revelam capacidade de instrumentalização dos aspetos teóricos de aprendizagem (em contexto formativo e em contexto profissional), donde se constrói uma teoria da prática profissional, aliada ao movimento crítico de Serviço Social e próximo da conceptualização do Serviço Social Moderno atento às formas de interdependência entre estruturas/contextos, atores/agentes e intervenção/inclusão. Esta tríplice é fundamental para a apreensão da complexidade e multidimensionalidade da realidade social onde as diversas vozes que regulam a vida individual devem ser enquadradas de forma “autorreflexiva pelo profissional de Serviço Social” (Fook, 2002:78). 

O contexto específico de intervenção profissional baseia-se num código interno (fundamentado pelas políticas institucionais do agir profissional) de interação profissional onde participam todos os atores sociais, bem como os objetivos profissionais, permitindo, desta forma, a criação de uma identidade própria ao grupo profissional; sendo o contexto de intervenção profissional um dos elementos constituintes da identidade profissional decerto delimitar-se-ão outras configurações identitárias em contextos diversificados. 

(i) Dentro das teorias funcionalistas e interacionistas o Serviço Social tem dificuldades em cumprir alguns dos requisitos para ser assumida como profissão, designadamente os requisitos que se prendem com a especificidade de funções e de campo de intervenção, bem como a existência de um corpo teórico solidamente edificado e constituinte como matriz da identidade profissional. Macdonald (1995) e Abbot (1998) inscrevem a profissão de Serviço Social na tipologia específica do que consideram as “profissões de cuidado”. Estas profissões conjugam critérios que as tornam singulares no mundo das profissões, apesar de não preencherem os requisitos atrás mencionados. Estes critérios referem-se assim às seguintes circunstâncias: estes profissionais têm uma clientela em situação de precariedade económica e social e, por conseguinte, não produzem de forma imediata e visível qualquer retribuição económica, pelo que estão excluídos do mercado capitalista de trabalho; 

(ii) estes profissionais possuem um saber, essencialmente prático, onde o quotidiano profissional e a realidade social, em permanente mutação, lhes exigem uma “atualização” constante pelo que se torna difícil a aquisição de metodologias específicas de intervenção social; 

(iii) a aparente familiaridade que estes profissionais possuem com redes de solidariedade informais e com técnicas de aconselhamento pessoal pode ser percebido, pelo público em geral, como práticas profissionais baseadas no senso comum. 

A indeterminação metodológica é avivada, na opinião de Macdonald (1995) pela sua formação académica polivalente e generalizada, não transmitindo uma especificidade teórica e metodológica. Outros autores, como Parton (2000) referem que a incerteza na classificação de Serviço Social como profissão baseada no fundamento da inexistência de um corpo teórico específico que potencialize uma metodologia de intervenção própria é uma falsa questão; dentro do paradigma construtivista, a produção de conhecimento nas ciências sociais e humanas (onde se inclui o Serviço Social) é o resultado de um processo mental ativo baseado nas experiências do indivíduo e na relação que este estabelece com o objeto de estudo. A verdade absoluta, rigor e precisão dão lugar a valores como viabilidade, coerência entre pensamento e ação, ética e responsabilidade. Todo o conhecimento tem sentido no contexto em que é produzido pelo que a sua generalização não é verificável. Se por um lado, é difícil integrar o Serviço Social no mercado capitalista de trabalho, regido por uma lógica economicista e se existem dificuldades no trabalho quotidiano em adequar permanentemente metodologias de intervenção específica aos pedidos sempre urgentes e mutáveis da população, também os argumentos de Parton (2000) na produção do conhecimento científico podem ser verificáveis no Serviço Social, pelo que o Serviço Social possui o estatuto de profissão onde as condições sociais circundantes legitimam e reivindicam a sua posição. Isto é, o grupo profissional de Serviço Social existe na sociedade não como um observador, mas como um ator detentor de uma identidade coletiva num sistema de ação concreto que se constrói constantemente; a capacidade de reflexividade do técnico, bem como o seu conhecimento particular e crítico dos elementos que constituem a teia social, permitem um reenquadramento permanente e atual de esquemas de intervenção teórico-práticos capazes de proporcionar a mudança social e proporcionar não só uma leitura fidedigna desses mesmos elementos, como em circunstâncias ideais a sua apropriação e utilização instrumental para a prática profissional. O Serviço Social vive um momento interessante da sua formação e da sua consolidação enquanto profissão legítima e socialmente legitimada, mas os profissionais, escolas e organizações têm responsabilidade no rumo que esta poderá tomar.


Clara Cruz Santos
Rostos de uma profissão: Identidades Profissionais do Serviço Social

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