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Desafios da Revolução Social | FatmaSocial

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As transformações e crises provocadas pela emergência e o desenvolvimento da sociedade civil, urbano-industrial, burguesa ou capitalista, constituem outra matriz da Sociologia. O modo de vida e trabalho na comunidade feudal vem abaixo com a formação da sociedade civil, a organização do estado nacional. Há uma vasta, complexa e contraditória revolução social na Europa, transbordando para outros continentes. O mercantilismo, ou a acumulação originária, iniciava um amplo processo de europeização do mundo. Simultaneamente, a Europa sentia que se transformava, em sua fisionomia social, econômica, política e cultural. Estava em marcha a revolução burguesa, atravessando países e continentes, sempre acompanhada de surtos de contra-revolução.

No meio da revolução e contra-revolução, combinando e opondo diferentes setores sociais, grupos e classes, províncias e regiões, interesses emergentes e estabelecidos, emergiam burgueses, trabalhadores assalariados diversos, camponeses, setores médios urbanos, intelectuais, burocracia pública e privada. À medida que se desenvolve e consolida a ordem social burguesa, impondo-se ao antigo regime, multiplicam-se as lutas sociais urbanas e rurais. Depois da revolução burguesa ocorrida na Inglaterra no século XVII e da Revolução Francesa iniciada em 1789, o século XIX assiste às revoltas populares no campo e nos centros urbano-industriais. O Cartismo na Inglaterra, desde 1835, e a Revolução de 1848-49, na França e em outros países europeus, assinalam a emergência do operariado como figura histórica. Em outros termos, e sob diferentes condições, algu mas linhas dessa história manifestam-se na Alemanha, Itália, países que compõem o Império Austro-Húngaro, Rússia, Espanha e outros. O século XIX nasce também sob o signo dos movimentos de protesto, greve, revolta e revolução. Aí estão alguns traços da sociedade burguesa, com tintas de modernidade.

É evidente que o tema da revolução social está no horizonte de alguns dos principais fundadores e continuadores da Sociologia. Estão preocupados em compreender, explicar ou exorcizar as revoluções que ocorrem na Europa e em países de outros continentes. E verdade que algumas revoluções preocuparam mais diretamente os fundadores. Dentre essas destacam-se as francesas e européias de 1789, 1848-49 e 1871. Mas logo eles e outros passaram a interessar-se pelas revoluções que haviam ocorrido e iam ocorrendo nas Américas e na Ásia. Alguns livros fundamentais denotam essa preocupação: Tocqueville, O Antigo Regime e a Revolução; Marx, As Lutas de Classes na França; Engels, Revolução e Contra-Revolução na Alemanha; Lenin, Estado e Revolução; Hannah Arendt, Sobre a Revolução; Barrington Moore Jr., As Origens Sociais da Ditadura e Democracia; Karl Polanyi, A Grande Transformação; Joseph A. Schumpeter, Capitalismo, Socialismo e Democracia; Theda Skoopol, Estados e Revoluções Sociais.

Naturalmente estão em causa várias formas da revolução social. Em um primeiro momento, o que sobressai é o empenho em explicar a revolução burguesa, que pode ser democrática, autoritária, prussiana, passiva. Em outro, a ênfase recai na revolução popular, operária, camponesa, operário-camponesa ou socialista. Mas também há interesse em analisar o contraponto revolução e contra-revolução. Em vários casos, de permeio a essas preocupações, coloca-se o desafio da revolução permanente. Isto é, as condições das continuidades e descontinuidades entre a revolução burguesa e socialista, em escala nacional e internacional.

A rigor, a análise da revolução social é um modo de conhecer a sociedade, as forças sociais que governam os movimentos da sociedade nacional tomada como um todo. Essa manifestação “extrema” da vida social parece revelar mais abertamente as relações, os processos e as estruturas, compreendendo dominação política e apropriação econômica, que organizam e movimentam a sociedade moderna. Como um todo, em seus grupos e classes, movimentos sociais e partidos políticos, as relações entre a sociedade civil e o estado revelam-se mais nítidas nas rupturas revolucionárias. A revolução social pode ser vista como uma situação extrema, um experimento crucial, um evento heurístico, quando se revelam mais desenvolvidas as diversidades e disparidades, os desencontros e antagonismos, que governam os movimentos fundamentais da sociedade.

Estava em curso o desenvolvimento da sociedade nacional, urbano-industrial, burguesa, de classes. Com a dissolução, lenta ou rápida, da comunidade feudal, emergia a sociedade civil. Essa ampla transformação concretiza-se em processos sociais de âmbito estrutural, tais como: “ — industrialização, urbanização, divisão do trabalho social, secularização da cultura e do comportamento, individuação, pauperismo, lumpenização e outros. Esse é o palco dotrabalhador livre, formado com a sociedade moderna.

Esse é o vasto cenário histórico que se constitui na matéria prima da Sociologia. Ela surge como uma forma de autoconsciência científica da realidade social. Essa é a realidade que alimenta boa parte dos escritos de Saint-Simon, Bonald, Maistre, Tocqueville, Comte, Burke, Spencer, Feuerbach, Marx e outros. É claro que esses pensadores alimentamse dos ensinamentos filosóficos de Hobbes, Locke, Montesquieu, Vico, Herder, Rousseau, Kant e Hegel, além dos enciclopedistas e outros. Mas é inegável que todos estão tratando de compreender, explicar e responder às transformações e crises manifestas em processos sociais estruturais, em movimentos de protesto, greve, revolta e revolução.

A Sociologia posterior dá continuidade a esse empenho de compreender, explicar, responder às transformações e crises sociais. Os escritos de Durkheim, Mauss, Halbwachs, Weber, Simmel, Toennies, Goldmann, Znaniecki, Mannheim, Gurvitch, Sorokin, Myrdal, Park, C.W. Mills, Merton, Parsons, Lazarsfeld, Bourdieu, Nisbet, Gouldner, Barrington Moore Jr., Schutz, Adorno e outros dão continuidade a esse empenho. É claro que são diversas e desiguais as contribuições de uns e outros, tanto do ponto de vista teórico como no que se refere as suas implicações políticas. No plano teórico, além das sugestões relativas ao hiper-empirismo e à fenomenologia, como nos casos de Gurvitch e Schutz, outros revelam-se ecléticos e alguns ortodoxos. No plano político também revelam todo um leque de posicionamentos, dentre os quais destacam-se liberais, conservadores e radicais. Mas talvez se possa dizer que todos buscam compreender, explicar, controlar, dinamizar ou exorcizar as condições das transformações e crises.

Em outros termos, em outros países e continentes, a Sociologia continua a desenvolver-se desafiada pelos dilemas da sociedade moderna mais ou menos desenvolvida. Na América Latina, África e Ásia tanto ressoam as idéias e teorias como os temas e explicações. Há contribuições que parecem anacrônicas, exóticas ou ecléticas, pelo que ressoam das sociologias européias e norte-americanas. Mas também há criações originais, inovações. Colocam-se novos temas e outras explicações. Surpreendem e desafiam, pela originalidade, força e invenção.

A rigor, esses continentes e países são, em certa medida, criações do Mundo Moderno, desdobramentos das forças sociais que movimentam a sociedade moderna. Desenvolvem-se e transformam-se com os desenvolvimentos e as transformações que ocorrem na Europa e nos Estados Unidos. O colonialismo, imperialismo, nacionalismo, cosmopolitismo e internacionalismo podem ser vistos como produtos e condições de um amplo processo de europeização do mundo. Em distintas formas e ocasiões, os países e continentes atrelam-se desigual e contraditoriamente ao que parece ser a força civilizatória do capital.

Revolucionam-se os modos de vida e as culturas nativos nas mais longínquas regiões. Os bárbaros são obrigados a civilizar-se, assumindo a barbárie do capital. Os povos fetichistas, panteistas, sem história, que vivam mergulhados no estado de natureza, são obrigados a assimilar o monoteismo bíblico, a diligência do trabalho que produz mercadoria e lucro, a disciplina exigida pela criação da mais-valia, a religião do capital. Está em marcha a revolução burguesa em escala mundial. Ao mesmo tempo, por dentro e por fora dessa revolução, desenvolvem-se revoluções nativistas, nacionalistas, sociais, populares, socialistas. Uma espécie de revolta desesperada contra a missão civilizatória do capital.

Esse é o amplo cenário no qual o pensamento sociológico originário da Europa e dos Estados Unidos tanto se difunde como entra em relação e confronto com outras idéias, teorias, temas, explicações. As obras de Frantz Fanon, José Carlos Mariátegui e Florestan Fernandes, para citar apenas esses exemplos, expressam e simbolizam uma parte importante dessa história. Mostram em que e como se modernizam os países e continentes que estão além da Europa e Estados Unidos. Ressoam contribuições européias recriadas em face de outros temas, dilemas. Mostram como se dá a revolução burguesa em outras partes do mundo. E como nascem as condições do socialismo, no contraponto com a barbárie. No começo e na travessia, a revolução social parece sempre presente no horizonte da Sociologia.

lanni, Octavio  in "A SOCIOLOGIA E O MUNDO MODERNO". Consulte aqui na íntegra.



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