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Dar o peixe, ensinar a pescar ou remover os muros?

Assistente social - Identidade e saber



"... Não basta saber; para agir é preciso ser para querer e mobilizar-se como instrumento do seu próprio trabalho, atribuir sentido à atividade e apresentar-se como profissional no contexto das interações. A forma identitária permite encontrar a coerência interna e articular o fluxo das representações saídas do passado com o que se quer fazer no futuro, é uma plataforma de segurança, básica para a ação, embora sempre provisória e sujeita a uma tensão permanente, cuja gestão exige suportes de mediação.

As instituições de ensino têm a responsabilidade de definir a estrutura sócio cognitiva básica da profissão. Para isso precisam ultrapassar barreiras, estabelecer laços de cooperação entre si de modo a integrar permanentemente os contributos das ciências sociais, os resultados da investigação na disciplina, a experiência dos atores profissionais individuais e coletivos, os contributos dos decisores políticos e empregadores. A profissão, para existir, tem que ter utilidade social reconhecida por quem precisa destes profissionais para desenvolver políticas e serviços. Por excelente que seja, nenhum profissional, nenhuma escola, ator, país ou centro de investigação, constrói isoladamente a profissão. O património de conhecimento e de experiência da profissão com a sua trajetória sócio histórico de experiência e de saber de ação não pode ser ignorado, desprezado ou olhado com arrogância.

Ser profissional implica ter autonomia para exercer a atividade, significa ser capaz de selecionar, escolher e reorganizar as ações, definir intenções e sentidos, gerir as prescrições, estabelecer as estratégias profissionais para agir nas relações de força existentes, ultrapassar os constrangimentos e utilizar as hipóteses possíveis para criar oportunidades de ação. Mas passar do conhecimento dos problemas das populações à construção dos problemas profissionais exige um exercício de problematização. 

No contexto da ação e perante os problemas das pessoas, instituições, normas, situações, contextos e relações, o profissional precisa construir os seus problemas profissionais; se os problemas das populações são a matéria-prima dos problemas profissionais, não são em si mesmo os problemas profissionais. Ficar preso aos problemas das populações leva à inoperância, ao pessimismo, ao conformismo e passividade profissional. Construir problemas profissionais significa estruturar a complexidade do real, estabelecer etapas de resolução, identificar obstáculos a transpor, tomar decisões, delinear estratégias, procurar compreender e explicar os fenómenos sociais e as sua manifestações singulares, classificar, ordenar, categorizar, e sobretudo, procurar respostas para transformar problemas em possibilidades de ação profissional nos processos de mudança. 

… o problema profissional:
• Não é o desempregado, mas conseguir a inserção no mercado de trabalho;
• Não é o isolamento, o individualismo, mas sim construir, restaurar os laços, fortalecer os atores coletivos; 
• Não é a carência, mas sim conseguir os meios e desenvolver o processo de provisão de recursos; 
• Não é a falta de coesão mas antes como restaurar a coesão social, estabelecer a articulação entre sistemas sociais. 

… Não se pretende generalizar mas tão-somente afirmar que estes profissionais são detentores de um saber agir que mobilizam para enfrentar os seus problemas profissionais. Esses saberes e interrogações podem dar pistas para a continuação de investigação sobre o saber de ação.

a) Constroem os seus problemas profissionais: 
• Elaboram diagnósticos abrangentes e fundamentados com respeito pela privacidade das pessoas sem sobrepor instrumentos de pesquisa e com articulação de informação dispersa já disponível; contrariam juízos de valor e preconceitos de outros grupos profissionais, sistemas sociais e senso comum instalado; 
• Identificam bloqueios e possibilidade de ação de acordo com as pessoas, grupos e comunidades, suas especificidades, modos de vida, recursos e limites, lógicas de grupos, interações e eventuais efeitos positivos ou perversos da ação; 
• Identificam necessidades de medidas preventivas face a riscos previsíveis;
• Definem critérios coletivos de análise das situações, trabalham em equipa utilizando os diversos saberes disponibilizados;
• Valorizam as análises das situações globais e não apenas as condições objetivas facilmente mensuráveis.

b) … as interrogações continuam:
• Como conseguir as sínteses teóricas necessárias para a interpretação dos problemas, perante um conhecimento cada vez mais complexo, diversificado, segmentado em disciplinas, que explicam os fenómenos mas não podem dar receitas para intervir nos processos de mudança? 
• Como avaliar riscos, trabalhar na urgência das respostas, no fluxo imparável, sem fim e imprevisível da ação, e gastar o tempo necessário, no seio dos contextos institucionais, dos prazos e prescrições dos projetos e das políticas, para construir os problemas profissionais?

c) Desenvolvem a sua atividade dirigida para as populações:
• Centram o trabalho nas competências das pessoas e não apenas nos seus problemas, identificam os recursos pessoais, mesmo desvalorizados pela baixa auto estima, valorizam saberes, modos de vida e culturas;
• Desenvolvem processos pedagógicos para trabalhar comportamentos desajustados e ressocializar de forma positiva indivíduos com atitudes e comportamentos que dificultam a interação nos diversos sistemas sociais. Estimulam o desenvolvimento de capacidades de populações com percursos de vida muito difíceis, identidades perturbadas e frágeis recursos sociais, culturais, simbólicos, relacionais; 
• Asseguram conhecimento concreto e personalizado das populações e criam e animam grupos, associações de auto ajuda e solidariedades para os diferentes tipos de problemas; 
• Fazem mediação intercultural entre população, outros profissionais, agentes sociais, organizações, serviços e exercem a advocacia social com vulgarização de informação sobre recursos, direitos e deveres;
• Enfrentam situações de ansiedade, agressividade, angústia das populações com quem têm que interagir e asseguram processos de comunicação eficazes, estimuladores da participação, da reflexão, para permitir situações de interação positivas e facilitadoras da ajuda;
• Garantem o acolhimento de pessoas mesmo quando a interação é dificultada por problemas graves de comunicação, ausência de higiene e agressividade;
• Atendem e negoceiam interesses diversos e muitas vezes paradoxais, e, apesar das interrogações, fazem escolhas, tomam decisões e correm os riscos inerentes; 
• Apoiam nas situações de crise, preparam e gerem situações de perda nas diferentes etapas da vida;
• Encontram respostas de emergência consistentes para populações em situação de exclusão extrema e adaptam-nas aos problemas com respeito pelos laços relacionais, modos de vida e culturas;
• Asseguram o apoio em rede, estabelecem alianças, preservam laços primários e familiares, asseguram participação das famílias e grupos, gerem conflitos e negoceiam acordos;
• Desenvolvem aprendizagens significativas e reflexivas para aumentar capacidades sociais; 
• Exercem o controlo social numa perspetiva pedagógica, com respeito pela autonomia e reconhecimento do outro enquanto ser humano com direitos e deveres; 
• Organizam atividades alternativas aos sistemas sociais para responderem a necessidades e criam e organizam atividades de expressão artística, cultural que promovem capacidades transversais nas populações;
• Organizam conhecimento e informação sobre os territórios e sobre recursos (como rede de transportes, serviços diversos, mercado de trabalho);
• Co-responsabilizam as populações pelo tratamento das situações, resolução dos problemas, atitudes e comportamentos; 
• Desenvolvem ações sem acentuar ruturas de laços sociais e asseguram redes de relações entre gerações; 
• Defendem as populações como seres humanos na sua totalidade indivisível, que não podem ser espartilhados nas suas múltiplas necessidades;
• Reconhecem prioridades e ordenam as respostas entre o interesse dos utentes e as medidas de políticas sociais;
• Identificam as lógicas das populações, interações comunitárias e seus eventuais efeitos positivos ou perversos na ação; 
• Articulam intervenção das diferentes instituições que interagem com os grupos e populações respeitando as lógicas e formas de organização específicas e sua caracterização dos problemas;
• Fazem a mediação entre poderes profissionais diversos e populações com poder reduzido e proporcionam aos grupos profissionais que atendem necessidades específicas a visão global da vida das pessoas; ocupam-se desse global e fazem a ligação com o quotidiano e suas implicações, possibilidade e limites; 
• Preveem dificuldades de contacto das populações com serviços e diferentes instituições e estabelecem as mediações que permitem o seu acesso aos serviços; 
• Identificam e previnem a exploração e estigmatização de pessoas vulneráveis e fragilizadas;
• Ultrapassam as barreiras das estruturas sociais mais pesadas e cujo funcionamento muito regulado não permite agilizar os processos em caso de emergência; intervêm no funcionamento normal dos sistemas e aparelhos profissionais para atender particularidades e singularidades das populações;
• Dinamizam intervenção de outros atores e articulação de sistemas família / educação/ saúde /serviços de apoio social/ tribunais/ emprego/ formação profissional/empresas e outras organizações e identificam lógicas diversas de funcionamento para desbloquear, aproveitar campos de ação e fazer funcionar os sistemas que interagem com as situações singulares;
• Gerem recursos escassos, organizam processos de distribuição com respeito pelas prioridades; 
• Organizam atos de consumo que sejam complementares aos circuitos normais de comércio e que sejam mais justos para famílias com baixos recursos; 
• Procuram na comunidade os recursos necessários para que as pessoas possam cumprir as medidas previstas e estabelecidas nos acordos; 
• Adquirem competências de gestão, para saber prestar contas, medir eficácia, desenvolver instrumentos de controlo para utilização de fundos públicos; 
• Garantem provisão de necessidades básicas de apoio a pessoas sem retaguarda familiar, estabelecem redes de sociabilidade, combatem isolamento, respondem a necessidades relacionadas com a sua vida quotidiana. 

d) … a complexidade das situações em que intervêm gera muitas interrogações e novos problemas: 
• Como respeitar interesses da população que procura emprego com as condições objetivas das ofertas existentes, exigências dos empregadores, desenvolvimento das capacidades de inserção social dos desempregados, situações de desafeição ao trabalho devido a baixos salários, más condições de trabalho, normas desajustadas?
• Como respeitar direitos de cidadania da população, sua necessidade de encontrar fonte de rendimento num mercado de trabalho desregulado?
• Como conciliar regras do RSI sobre medidas de inserção numa sociedade cuja cultura não valoriza o trabalho manual, e as possibilidades que os indivíduos têm de encontrar emprego se situam quase exclusivamente em postos de trabalho pouco qualificado?
• Como enfrentar o poder judicial, as políticas e suas regulações que generalizam e ignoram contextos sociais?
• Como intervir em situações multi problemáticas quando a solução dos problemas exige soluções abrangentes como a falta de alojamento, os baixos rendimentos, o desemprego e desqualificação, a violência doméstica, as situações de negligência? Que ligações estabelecer e ação desenvolver face a regularidades sociais identificadas e onde a possibilidade de influenciar ou agir é reduzida? 
• Que respostas para uma escolarização que qualifique, de acordo com as exigências socialmente estabelecidas, face a populações desmotivadas e com défice nos recursos sócio cognitivos já construídos? 
• Como intervir para travar a reprodução social e multiplicação de problemas? 
• Como gerir problemas acumulados ao longo de percursos de vida, que atravessam gerações, com sucessivas escolhas e decisões desfavoráveis relativamente a consolidação de autonomia e utilização de recursos?
• Como intervir nas famílias que têm elementos com dependências problemáticas, com comportamentos agressivos e que não aceitam tratamento ou fazem tratamentos sucessivos sem resultados? 
• Como garantir o apoio a pessoas muito fragilizadas, com recursos e poder reduzidos sem criar dependência?
• Como envolver famílias não motivadas para acompanhar percursos escolares dos filhos que abandonam a escola ou estão em processo de desligamento?
• Como intervir em meios culturais que não valorizam a escola, que incentivam condutas socialmente desviantes ou marginais como o tráfico de droga e a mendicidade infantil? 
• Como dinamizar associativismo entre grupos de população e criar condições para expressão valorizada de afirmação cultural?

e) Intervêm nos funcionamentos institucionais:
• Dinamizam e participam no fortalecimento e consolidação das equipas necessárias ao funcionamento eficaz das instituições;
• Procuram construir condições objetivas espaciais, materiais e relacionais que facilitem processos de socialização positiva, de fortalecimento de auto estima e satisfação de necessidades específicas ou globais;
• Organizam informação sobre normas e recursos disponíveis com consulta rápida e eficaz;
• Adaptam funcionamentos institucionais a necessidades de grupos específicos; 
• Humanizam os funcionamentos institucionais, as intervenções de outros profissionais; 
• Articulam interesses dos assalariados com os interesses das organizações e a qualidade dos serviços que prestam; formam e resolvem problemas do quotidiano para melhorar a qualidade de serviços prestados sem esgotar os cuidadores e voluntários; 
• Asseguram informação de proximidade necessária aos outros profissionais;
• Asseguram coordenação e cooperação entre serviços, adaptam regras, programas de apoio, projetos, normas institucionais necessárias ao funcionamento dos serviços com atividades flexíveis que se adaptem às populações; 
• Coordenam e cooperam com diferentes profissionais e serviços e asseguram a mediação entre serviços e família, entre equipamentos e comunidades envolventes;
• Fazem a mediação entre as diferentes culturas religiosas, filosóficas populares e as lógicas de outros profissionais e decisores. 

f) Ultrapassam dilemas éticos e afirmam princípios deontológicos da profissão: • Assumem a função de ajuda em simultâneo com a de controlo social e de representante de autoridade;
• Decidem sobre problemas que põem em causa percursos de vida e direitos e decidem em situações paradoxais; 
• Identificam escalas de valores das populações, as implicações nas suas estratégias e articulam com as suas responsabilidades profissionais e a necessária racionalização dos recursos.

g) Constroem sensibilidade social, resistência psicológica e gerem emoções:
• Controlam o seu etnocentrismo e os julgamentos sobre a vida, valores e problemas existentes; 
• Identificam indícios de problemas latentes e pouco visíveis; 
• Procuram equilíbrio no seu envolvimento emocional relativamente aos problemas graves de populações muito vulneráveis, sem perder a sensibilidade social necessária para compreender os problemas, sua origem, e ao mesmo tempo garantir objetividade nas avaliações e nas decisões. 

h) … persistem interrogações: 
• Como garantir direitos de cidadania e privacidade relativamente a populações que precisam recorrer ao apoio de serviços públicos de ação social em territórios com redes de inter conhecimento aprofundado e onde os atores sociais desejam que a ajuda seja acompanhada de controlo social? 
• Como articular com outros sistemas que podem intervir em situações onde claramente é preciso controlo social?
• Como gerir situações de exigência de controlo, distanciamento emocional e empatia com populações com comportamento desviante, desajustado, agressivo, resultante de processos de socialização negativa e condições objetivas de vida desestruturadoras de identidades positivas? Como promover a sua ressocialização para favorecer o exercício de papéis familiares e sociais? • Como resistir à frustração permanente perante problemas graves claramente identificados que atingem grupos mais vulneráveis e sem dispor de recursos para dinamizar a sua resolução, não poder resolver problemas? 
• Como organizar voluntariado e gerir os grupos de voluntários e profissionais para que os seus interesses próprios não se sobreponham aos interesses das populações que apoiam?

i) Produzem e valorizam o saber profissional: 
• Realizam processos de reflexão individual e coletiva, muitas vezes de forma informal, onde debatem as suas próprias representações sobre os utentes, sobre os problemas, sobre os modelos de intervenção;
• Estimulam exercícios de meta cognição e processos de transferência que articulam a teoria e a atividade profissional, a utilização de saberes anteriormente estruturados em novas combinações exigidas pela realidade concreta;
• Estimulam a aprendizagem do grupo profissional pela reflexão coletiva inter pares, formal e informal, e influenciam comportamentos e atitudes dos profissionais mais novos para garantir cultura profissional própria; 
• Estimulam o grupo profissional para debater políticas direcionadas para problemas que, sendo individuais, começam a generalizar-se;
• Fazem a estruturação de situações problema, modelos de intervenção que se constituem como repertórios que depois são disponibilizados às equipas;
• Recompõem métodos e tecnologias de intervenção social com divulgação de boas práticas do seu repertório ou dos coletivos que demonstram resultados.

j) … também neste campo permanecem muitas interrogações: 
• Como estimular a escrita profissional e redação de processos verbais e treinar a capacidade dos profissionais para explicar claramente quem são e o que fazem em articulação com as instâncias de formação e investigação, numa ligação permanente entre o exercício profissional, a formação e a investigação sobre a disciplina? 
• Como desenvolver a atividade discursiva profissional, elaborar sínteses teóricas de forma a serem transferíveis para novos contextos de problemas, dominar conceitos e linguagem de disciplinas diversas necessárias ao saber profissional? Como desenvolver capacidade argumentativa, para produzir saber legitimado pela comunidade científica e ter autoridade junto dos públicos externos e internos?
• Como passar de análises e compreensão dos processos psicossociais para a criação de alternativas de acordo com a compreensão teórica dos processos, considerando as dificuldades de gestão do quotidiano das instituições sem acomodação nem pessimismo paralisante? 
• Como estimular a atividade reflexiva na e sobre a atividade profissional, transformar o testemunho subjetivo em trabalho intelectual, permitir a formalização dos saberes, sua transformação e recriação? 
• Como assegurar transversalidade das diferentes áreas de intervenção, ser generalista sem ser superficial?
• Como assegurar escrita profissional que seja operativa e sirva de base a equipas de trabalho compostas por vários profissionais que intervêm junto do mesmo agregado?
• Como enfrentar outras lógicas profissionais e argumentar com fundamento sobre problemas da ação complexa dos assistentes sociais e seus ritmos de execução? 

O desenvolvimento de investigação em rede, envolvendo investigadores, profissionais, centros de investigação, instituições de ensino que se centrem nos problemas, nas estratégias e atividades dos profissionais, pode resultar em contributos importantes para a construção da disciplina. Assim o processo se desenvolva numa perspetiva de construção e de reflexão, prossiga na invenção de respostas para problemas complexos, não acentue a prescrição e a avaliação exterior à própria atividade profissional com desprezo pelo saber agir profissional."



Granja, B. P. (2011). Assistente social-Identidade e saber.



A atualidade do Serviço Social em Portugal


Desregulação do Serviço Social

"… assistimos a grandes transformações no ensino e na profissão do Serviço Social. Num contexto de globalização, neste início de um novo milénio no qual vivemos, a realidade social pode ser descrita pela euforia da incerteza, pela ação que escapa das mãos humanas, fazendo com que todos os sistemas societais pareçam rodar sem controlo, sejam eles o sistema político, o económico, o cultural, o social ou o científico-tecnológico. Como defende Amaro (2012), precisamos de pensar o Serviço Social num novo contexto civilizacional. Neste novo mundo globalizado, as competências ultrapassam a experiência e a tecnologia, e a racionalidade técnico-instrumental domina os sistemas sociais, mesmo que em graus de dominação diferentes.

O Serviço Social, nas suas várias vertentes - axiológica, teórica, metodológica e prática - tem de se reinventar nesse novo quadro civilizacional, ou poderá enfrentar transformações impostas que poderão ditar a sua extinção, por inutilidade ou ilegitimidade. A profissão do Serviço Social tem de assegurar o seu lugar nos novos contextos sociodemográficos, políticos, económicos, tecnológicos e culturais, para que possa melhorar ou desenvolver esses mesmos contextos de existência. Uma das dimensões essenciais desse reenquadramento passa pela formação e pela qualificação dos profissionais.

… o Serviço Social orienta o seu conhecimento para a intervenção, em que as competências para a ação superam a experiência. Aos profissionais é requerida capacidade de ação, competências para a resolução dos problemas sociais rapidamente e com menos recursos, o que não pode deixar de colocar em causa a eficiência das políticas sociais e da intervenção do Serviço Social (Carvalho et al., 2013). O Serviço Social é balizado por padrões de atuação orientados por intervenções "tradicionais" e "paternalistas", guiados por padrões burocráticos e de controlo financeiro dos direitos sociais (cf. Campanini, 2011, p. 649) …a gestão de casos e a burocracia estão a substituir o acompanhamento real dos casos sociais. Essas orientações têm implicações não só para a profissão como para a vida das populações com as quais os assistentes sociais trabalham; a promoção dos direitos humanos e da justiça social são postos em causa e desafiam o Serviço Social a procurar outras formas de atuação.

As medidas de austeridade colocam em causa as políticas sociais, nomeadamente as da saúde, da segurança social e do ensino, agravando os problemas sociais. As políticas caracterizaram-se: pela fragmentação e por se dirigirem a um grupo de pessoas com múltiplas carências em que se identificam situações de dependência e pobreza quando a necessidade já está instalada; por serem efetivadas num quadro de recursos escassos e por vezes inexistentes; pelo acesso controlado por mecanismos de gestão centrado na eficácia bem como eficiência, bem como lucro/sustentabilidade dos sistemas (recursos versus necessidade). Essa transformação coloca em causa o campo de atuação do Serviço Social nas políticas sociais. O Estado não tem capacidade económica para dar resposta às disfunções do mercado de trabalho, demite-se das suas funções de "previdente" e adota uma ação moralizadora de comportamentos. Privatizar, concessionar, bens e serviços públicos, tornou-se a função do Estado. O bem público agora tornou-se bem privado dirigido para o "cliente" e para a satisfação do mesmo, e não para a satisfação do coletivo.

Num contexto de crise global e de crise de legitimidade e financeira do Estado, não é só o investimento nas políticas sociais que é posto em causa, mas também a profissão de assistente social. A desregulação do ensino do Serviço Social diluiu os antigos perfis profissionais, a desregulação do mercado de trabalho, e a crescente importância, liderada pelo mercado, requer novos perfis profissionais do social. Atualmente as ofertas de trabalho, que existem, mas menos bem pagas e com piores condições de trabalho do que no sector público, são no setor privado não lucrativo e, mais secundariamente, no setor empresarial (quer nas respostas sociais desenvolvidas por este setor de bem-estar, bem como na emergente área da responsabilidade social das organizações, que parece estar a abrir novos nichos de mercado que os assistentes sociais têm certamente competências e apetência para preencher).

Numa sociedade global e tecnicista, o Serviço Social tende a ser cada vez mais racional, controlado por legislação e protocolos de atuação enfatizando a técnica como "quase" um fim, e não como meio da sua ação. Esse contexto onde a racionalidade instrumental se destaca, demanda um pensamento "reflexivo". De fato, a política social e o Serviço Social da/na sociedade de risco tornam-se reflexivos quando se confrontam necessariamente com os seus resultados, tensões, conflitos, contradições e desafios (Zinn, 2008). Embora seja o próprio Estado social, e as suas políticas sociais, a produzir riscos sociais, o Serviço Social vê-se na contingência de continuar a ser aquele que tem de atender a velhos e novos riscos. O Serviço Social constitui-se como agente fundamental promotor de reflexividade implícita em processos de criação e superação de riscos sociais, pelas várias dinâmicas societais.

Desafios na atualidade

O Serviço Social português foi construído num contexto ditatorial e de assistência social, mas nas últimas décadas soube modernizar-se, integrando-se no âmbito dos direitos humanos e da justiça social. Contudo, ainda enfrenta grandes desafios e imensos problemas em termos do conhecimento, do ensino e da profissão.

Neste período com maior relevância da participação na reinvenção da política e da cidadania na sociedade de risco, defronta-se também com a importante ocasião de intervir mais e melhor na realidade social em que opera (Beck, 1992; Franklin, 199). O duplo mandato do Serviço Social, no oximoro de emancipação-controlo, certamente deixa a profissão e os profissionais em algum clima de incerteza e de ambiguidade. Se em momentos mais "normais" (à semelhança da perspetiva estrutural da ciência de Kuhn) a tensão se esbate, pelo contrário, nos momentos de incerteza como os vividos presentemente, nos quais as certezas se desmoronam, as tensões voltam a ressurgir com força (Amaro, 2012).

Reconhecendo a produção "social" dos problemas sociais que abalam as sociedades mais desenvolvidas, podemos constatar que no presente contexto do Estado social português, na senda das transformações do denominado modelo social europeu, impera a "individualização" como fenómeno central da vida dos cidadãos e dos próprios sistemas sociais. A individualização, no sentido que lhe dá Beck (1992), traduz-se numa dimensão de emancipação dos sujeitos em relação à tradição, aos sistemas tradicionais, políticos, sociais, culturais ou econômicos.

Contudo, para lá da dimensão de perda da estabilidade tradicional, a individualização apresenta uma dimensão de reintegração, no sentido de integração nos novos tipos de envolvimento social, nomeadamente integração em sistemas secundários, como o mercado de trabalho e os sistemas de segurança social (Zinn, 2008). Essas dimensões da individualização produzem, antes de mais, "padrões biográficos institucionais", em resultado das entradas e saídas contínuas dos sistemas formais, muitos deles relativos às políticas sociais, como a educação, a segurança social, a saúde ou o mercado de trabalho.

Os indivíduos tornam-se "entidades autogovernadas" (O'Malley, 2008, p. 55), levando a que as intervenções sobre os cidadãos sejam fundamentalmente baseadas nas suas capacidades, potencialidades e limitações, como se cada indivíduo se revelasse um ser atomizado do sistema. Deste modo, a governamentalidade dos problemas e dos sujeitos é efetuada com base numa "individualização personalizada" e na tecnologia, nos seus produtos e na sua racionalidade. O Serviço Social no presente não tem conseguido impedir-se de ser agente dessa governamentalidade. O Serviço Social terá de ultrapassar o perigo de posições meramente reativas e defensivas, a pensar num Serviço Social mitológico, de um tempo passado, real ou imaginado.

… após este percurso sobre o Serviço Social em Portugal, a profissão, na sua vertente de práxis e de saber, terá mais a ganhar com posições proactivas nas quais reconheça os desafios e os incorpore, de modo a defender seus princípios e legitimidade.

É importante não recear as mudanças sociais e políticas, nem os outros profissionais e perfis profissionais do social como meros inimigos e concorrentes, pois parece mais importante a colaboração e a solidariedade multidisciplinar e transdisciplinar do que a criação de guetos profissionais corporativos que fragilizam mais do que fortalecem. E para que isto seja possível há também a necessidade de desconstruir o "obscurantismo identitário" (Amaro, 2012), relacionado com certo "provincianismo" (Campanini, 2011), que impede a visibilidade do Serviço Social no âmbito da academia e da divisão social do trabalho. Para ultrapassar essas questões é importante a reflexão fundada na humildade científica, bem como o consentimento das diferentes visões da profissão, e não homogeneização-hegemônica da profissão e dos profissionais, o que só empobrece a ambos e pode remeter também o pensamento do Serviço Social para um "novorriquismo" que não tem em consideração o seu passado. 

Para concretizar esse pensamento é necessário um movimento de reflexão dual: por um lado, a abertura multidisciplinar a outras áreas do saber e, por outro, a construção de um saber transdisciplinar específico do Serviço Social, que possibilite a construção da sua identidade cognitiva, operativa e deontológica (Carvalho et al., 2013).

As questões sobre a visibilidade do Serviço Social não se podem imputar exclusivamente aos profissionais… o Serviço Social é o resultado do modo como a sociedade e o Estado estão organizados. Para que o Serviço Social se destaque na sua função, a construção do bem-estar das populações, é necessário que os profissionais estejam motivados para participarem nesse processo, mas também que a sociedade e o Estado estejam recetivos a essa mudança. É nesse cruzamento entre a teoria e a prática, por um lado, e as possibilidades e a motivação, por outro, que consideramos ser importante desconstruir o domínio da prática sobre o saber teórico e o voluntarismo profissional, uma prática que acontece apenas com base nos princípios e na ética profissional. O conhecimento em Serviço Social necessita ser validado pelos agentes sociais relevantes - os cidadãos, a sociedade, as organizações e o Estado - e pelos assistentes sociais.

A qualificação dos assistentes sociais é uma condição essencial para uma intervenção mais eficaz, eficiente e relevante para os objetivos de desenvolvimento das sociedades onde o Serviço Social intervém, pois é fator de empowerment dos profissionais, para que estes possam ser elementos capacitadores e catalisadores do empowerment dos sistemas-cliente (Pinto, 2011). Os vários agentes da profissão - assistentes sociais, académicos, clientes e seus familiares, comunidades, sociedade civil e o Estado - são desafiados a trabalhar em conjunto para definir regras de qualidade do ensino e da profissão, assente no desenvolvimento do capital humano e capital social da profissão e dos profissionais.

… é fundamental melhorar as qualificações, dos profissionais e dos agentes académicos de formação, bem como o desenvolvimento de uma cultura profissional de associação, fundada na confiança recíproca e na colaboração solidária (Carmo e Pinto, 2011). Para poder vingar como área do conhecimento e como profissão nos tempos futuros, o Serviço Social vai necessitar viver em autenticidade, isto é, assumir perante si próprio os seus valores, saberes e práticas, de uma forma reflexiva e integrada."



Carvalho, Maria Irene, & Pinto, Carla. (2015). Challenges faced by Social Work in Portugal nowadays. Serviço Social & Sociedade, (121), 66-94. 





A profissão de Assistente Social em Portugal


"A profissionalização do Serviço Social como projeto  foi tardia em Portugal e atravessou diferentes fases e dinâmicas; durante o regime do Estado Novo, o desígnio do desenvolvimento profissional esteve relativamente ausente enquanto projeto dos assistentes sociais portugueses. Apesar da constituição do Sindicato Nacional dos Profissionais de Serviço Social em 1950, o projeto da profissionalização só ganhou impulso após as transformações sociais e políticas de Abril de 1974, com a constituição, em 1978, da Associação dos Profissionais de Serviço Social; expressão por excelência do projeto de profissionalização do Serviço Social em Portugal e todo o processo de mobilização profissional, envolvendo as organizações associativas e académicas, pelo reconhecimento da Licenciatura em Serviço Social e a criação de uma carreira profissional própria, objetivos que viriam a ser concretizadas em 1989 e 1991, e que constituem, ainda hoje, o seu marco mais saliente… O ano de 1997 marcou o início de uma nova etapa deste movimento; é partir desta data que a APSS desenvolve um processo tendente à constituição como Ordem dos Assistentes Sociais, o que conduziu, em 2003 e agora em 2015, à apresentação formal, à Assembleia da República, do pedido de constituição da Ordem Profissional e de consagração do Estatuto Profissional dos Assistentes Sociais. A situação atual do Serviço Social em Portugal é atravessada por dinâmicas e tendências contraditórias do ponto de vista do projeto de desenvolvimento profissional. Por um lado, pode observar-se uma dinâmica de aprofundamento da dinâmica de profissionalização do serviço social em torno do processo de constituição de uma ordem profissional dos assistentes sociais, um processo em aberto, complexo e não linear quanto ao seu desfecho. Por outro lado, como se assinalou, a dinâmica de alargamento, sem precedentes, da formação em Serviço Social, se confere a esta profissão uma maior expressão quantitativa e presença no território nacional, não deixa de colocar problemas críticos em termos da regulação e qualidade da formação profissional de base dos novos e futuros profissionais. Por outro lado ainda, a precariedade das relações de trabalho e as transformações na esfera nas políticas sociais públicas, que apontam para a ativação, a territorialização e a individualização da política social e têm conduzido a mudanças nucleares nas conceções de solidariedade, cidadania e direitos sociais, a par da crescente presença de uma orientação managerealista, procedimentalista e instrumental (Amaro, 2009), podem tender a operar uma dinâmica de desprofissionalização, que se afigura problemática para o projeto de desenvolvimento profissional do serviço social em Portugal."


FRANCISCO BRANCO, CESSS - Centro de Estudos de Serviço Social e Sociologia, UCP

Ander-Egg - Intervenção comunitária


Comunidade refere-se a um agrupamento de pessoas que habitam num espaço geográfico delimitado, onde existem objetivos comuns de resolução das problemáticas e satisfação das necessidades; faz-se de forma organizada. O desenvolvimento de uma comunidade processa-se através dos programas e atividades nela realizadas, envolvendo a participação dos interessados.

A intervenção no desenvolvimento comunitário, operacionaliza-se atendendo às especificidades de cada comunidade sujeita a intervenção e visa atender a necessidades e problemas, objetivando o desenvolvimento e melhoria na qualidade de vida. (Ander-Egg, 2007, p. 19)

Diferentes alcances do conceito comunidade: 

O termo comunidade pode designar um grupo de pessoas unidas por um propósito comum ou a viver juntas, um bairro, aldeia ou município, comarca, província, nação, continente (a comunidade a nível micro, meso, macro). No passado aludia basicamente a uma relação particular entre território e coletividade. (idem, p. 19) 

As realidades de cada comunidade implicam a amplitude espacial (micro, meso e macro; pode pensar-se comunidade para designar um espaço ou território delimitado, utilizando o termo para designar as pessoas e relações que estabelecem, constituindo uma entidade identificável e individualizável por limites geográficos e precisos. 

Comunidade é também um conjunto de pessoas que partilham uma herança social comum, tradições, costumes, língua ou etnia, adicionando á noção de comunidade o reconhecimento de uma história identidade e destino comum (idem, p.20)

Numa dimensão psicológica consideram-se aspetos substanciais como o sentimento ou consciência de semelhança e pertença, onde os indivíduos se percebem como parte de uma rede de relações e laços comuns que se identificam psicologicamente com a comunidade da qual fazem parte; por vezes o conceito alude às relações sociais que existem entre um conjunto de pessoas que partilham interesses comuns e ligadas por aspirações, valores e objetivos comuns. 

Aplica-se ainda o termo em referência, a uma entidade funcional e autónoma, ainda que inserida noutras unidades mais amplas. A funcionalidade social de uma comunidade expressa-se através de:
• Atividades económicas de produção, distribuição e consumo; 
• Disponibilização de determinados recursos, bens e serviços; 
• Instituições, papéis e classes sociais estabelecidos no seu interior (idem, p.20) 

Explica-se assim o equívoco a que o termo induz e por outro lado clarifica-se como conceito utilizado de forma analógica e elástica, obtém todos os significados; é primordial delimitar o alcance dado no campo dos métodos de intervenção social, ainda que depende dos limites atribuídos pela sociologia, antropologia e psicologia social (idem, p. 21)

Elementos comuns nas diferentes utilizações do conceito:

• Supõe como elemento mais importante um conjunto de pessoas que interagem entre si, têm relações e laços comuns, partilham determinados interesses e participam nalgum objetivo ou função comum. Por algum desses elementos, esse conjunto de pessoas é identificável e assim podemos designá-las “comunidade de…” segundo o caso. (idem, idem) 
• Implica também um espaço ou âmbito onde se dá a existência da comunidade; selecionando o que nos interessa no vocábulo em função do desenvolvimento da comunidade enquanto método de intervenção; obtemos como elemento base o território. Acrescido ao conjunto de pessoas e território, existe o sentido de pertença a “algo” de que todos fazem parte. Frequentemente esse conjunto de pessoas que forma uma comunidade tem uma herança social partilhada: costumes, valores. 
• Funcionalidade, porque as pessoas estão juntas, relacionam-se e interagem mais intensamente que noutro contexto. Esta funcionalidade exige disponibilidade de recursos, bens, serviços e a realização de atividades por organizações e instituições, num conjunto de relações sociais onde existe diversidade de papéis, distintas posições e classes sociais. (idem, idem) 

Assim pode dizer-se que os elementos estruturais mais importantes são: 
• O território (localização geográfica) 
• A população (que habita esse território) 
• Os recursos/serviços (perfil da atividade produtiva e de serviços disponíveis) 
• Formas de interação, relações e laços comuns que oferecem uma identificação coletiva (sentimento     ou consciência de pertença). (idem, p. 22)

O que se entende por comunidade:

• Agrupamento ou conjunto de pessoas vinculadas entre si 
• Que habitam um espaço geográfico delimitado ou delimitável (componente territorial); não se pode definir um âmbito comunitário a “régua e esquadro”, mas delimitado pelas pessoas que o integram, seja por limites político administrativos, históricos ou culturais. Nalguns casos demarcações municipais, noutros com limites de território e habitat facilmente reconhecíveis e percebidos como uma unidade social. Esta dimensão é elástica, pode aludir a um grupo de colonos, habitantes de um bairro, aldeia, etc. Noutras circunstâncias designam-se unidades sociais mais amplas como a comunidade nacional latino-americana, europeia ou internacional. O conceito utilizado com esse alcance não tem a ver senão em semelhança com o mais delimitado no espaço, a utilizar ao expor os problemas da comunidade (idem, p. 22-23) 

As relações sociais de uma comunidade ou coletividade não estão confinadas a um espaço físico delimitado e delimitável. Os laços e interações dos membros de uma comunidade transcendem os limites geográficos. Assim, o termo “comunidade” inclui uma perspetiva de análise das redes. (idem, p. 23) 

• Que operam em redes relativamente estáveis dentro da comunidade e seu contexto; a noção de comunidade tem vindo a ser reconcetualizada desde a antropologia e sociologia, dando mais importância e significado ao facto das comunidades constituírem sistemas de redes sociais. Nesta perspetiva as comunidades consideram-se não tanto pela sua dimensão territorial, mas como um conjunto de relações nas quais o indivíduo interage com outros na sua vida quotidiana. Estas relações configuram-se em torno de cada indivíduo, de diversas características, conteúdos e modus operandi. Nalguns casos possuem carácter utilitário ou pragmático (tarefas ou atividades desportivas) e noutros carácter emocional (grupos de ajuda mútua ou apoio social. (idem, idem) 

No seio de cada comunidade podem existir interconexões entre diferentes redes ou mais restritivamente, entre pessoas pertencentes a diferentes redes. Também pode verificar-se que nalgumas redes não existe nenhuma relação e operem e atuem de forma paralela no interior da mesma. Quando há relações entre redes estas podem ser de cooperação, conflito ou neutras. Mais, numa comunidade podem existir pessoas ou redes vinculadas a outras que transcendem o âmbito territorial comunitário (idem, idem). Há que ter em conta que a maioria das pessoas está imersa em várias redes simultaneamente, ainda que com um grau variado de pertença a cada uma delas. (idem, p. 24) 

• Os membros têm consciência de pertença ou identificação com algum símbolo local. Para fazer parte de uma comunidade há que ter consciência de pertencer a ela ou sentir-se identificado com algum símbolo local (nome da comunidade, aldeia, bairro ou vizinhança). 

Este sentimento de pertença à comunidade em que se vive é uma forma de riqueza social (capital social). Isto cria um cultivo muito favorável ao assumir a “sua comunidade” como algo próprio e para que exista maior disposição a resolver os problemas coletivos. É uma riqueza intangível que produz consequências práticas altamente positivas para atacar certos problemas que atacam o bairro ou cidade (idem, idem) 

• Interação entre si mais intensa que noutros contextos - Os membros de uma comunidade (qualquer a amplitude com que se utilize o termo) têm maior ligação entre si e consequentemente maior interação. Os membros de um bairro interagem mais intensamente entre si do que com outros bairros mas os membros de um e outro fazem-no mais intensamente por pertencer à mesma cidade ou povoação, do que os que vivem noutra cidade. 
• No propósito de alcançar determinados objetivos, satisfazer necessidades, resolver problemas ou desempenhar funções sociais relevantes a nível local - Estes propósitos podem concretizar-se e realizar-se no âmbito das atividades económicas (produção, distribuição e consumo); na utilização de equipamentos e serviços comuns partilhados ou a partilhar pelos membros; na participação social em diferentes organizações e no apoio mútuo, seja através de mecanismos institucionais (governamentais ou não) ou através de grupos primários (família, amigos, vizinhos). (idem, idem) 
• A amplitude e flexibilidade do conceito transporta à imprecisão; há que precisar a que comunidade se faz referência. Se não o fazemos não se identifica nem o sujeito nem o objeto de desenvolvimento comunitário. (idem, p. 25) 

Enquanto metodologia de intervenção social, o conceito de comunidade aplica-se com dois sentidos ou alcances distintos, mas não contrapostos entre si. (idem, idem) 

• grupos que compartilham um interesse ou função em comum 
• população de determinada zona geográfica (Murray Ross citado por Ander-Egg, 2007, p.25-26) (Ander-Egg, 2007) 

Sob o ponto de vista operativo no primeiro caso alude a uma área de actuação (desenvolvimento de comunidades rurais, urbanas, etc.) por outro faz-se referência a um sector de intervenção organização de uma cooperativa, projectos de ajuda mútua). Na prática podem cruzar-se ambos os alcances do termo com a realização dentro de uma área de actividades de alcance territorial ou outros de tipo sectorial (idem, p. 26) 

Uma perspetiva diferente para definir o conceito de comunidade

O antropólogo espanhol Josep Canals sugeriu uma nova perspetiva para definir o conceito de comunidade a partir do conceito de rede social capaz de estender-se “para além dos grupos permitindo descrever interações sociais complexas que incluem no emaranhado grupos e outros conjuntos”. Para Canals as redes sociais ou pessoais podem ter múltiplas interconexões ou nenhuma; no primeiro caso desenham uma rede que pode ultrapassar os limites territoriais do que denominamos comunidade. 
  •  As redes ultrapassam os limites territoriais do que denominamos comunidade. 
  • As interações mais densas e com maior conteúdo emocional não correspondem necessariamente aos limites da comunidade 
  • Redes sociais e comunidade raramente correspondem 
  • Indivíduos muito próximos no espaço podem não ter nenhum ponto de contacto entre as suas redes pessoais (idem, p .26-27) 
A necessidade de reformular o conceito de comunidade não é uma questão formal mas um requisito de organização do pensamento. “O conceito de rede resulta uma alternativa vantajosa ante a imprecisão e conotações de comunidade”. (idem, p. 27) 

Noção de desenvolvimento

A origem do interesse pelo desenvolvimento nos países capitalistas associa-se às ideias de John M. Keynes relativas à regulação de alguns acontecimentos económicos (revolução industrial) para evitar ou reduzir o efeito perturbador das crises recorrentes do sistema de produção capitalista (idem, idem). Muitos debates têm sido realizados sobre desenvolvimento e subdesenvolvimento, mas não basta discutir e estudar os problemas e necessidades das pessoas, há que comprometer-se com ações e atividades concretas que conduzam à solução desse problemas e á satisfação dessas necessidades. (idem, p.28) 

Conceitos similares utilizados em diferentes momentos históricos

Antes que a problemática se formulasse foi exposta sob diversas formas a considerar equivalentes: riqueza, evolução, progresso, crescimento, desenvolvimento económico, desenvolvimento. (de LA Peña). Depois outras precisões: desenvolvimento integral e harmónico, unificado e finalmente o atual desenvolvimento sustentável, dando enfase a uma conceção de desenvolvimento orientado segundo as necessidades, ecologicamente solvente, com distribuição mais equitativa dos recursos, pessoas mais saudáveis, instruídas e capacitadas, governos descentralizados orientados para a promoção da participação; ideias centrais da nova conceção do desenvolvimento que superou os enfoques dos especialistas “aprisionados pela teoria do possuir e da extensão da possessão quando na realidade teria de subordinar-se-lho ao “ser mais” e elabora uma teoria e praxis do “ser mais” e elaborar uma teoria que compreendesse a utilização civilizacional do possuir. (idem, p. 29) 

Quando se foi partilhando a ideia do desenvolvimento da comunidade, o conceito vigente tinha um significado muito mais estreito e forte tonalidade economicista. Ainda hoje se fala muito pouco de desenvolvimento, a concepção actual está perto do estilo e espírito que sempre predominou no desenvolvimento da comunidade (idem, idem)

Notas conclusivas

O desenvolvimento local envolve as dimensões de autonomia, cidadania e participação dos atores locais para combater as desigualdades locais e procurar soluções inovadoras. 

“O Desenvolvimento Comunitário como um “processo, método, programa, instituição, e/ou movimento que: 
• envolve toda a base da comunidade na solução dos seus próprios problemas; 
• promove o ensino e insiste no uso de processos democráticos para a (re)solução de problemas comum à comunidade; 
• estimula e facilita a transferência de tecnologias para que a comunidade possa solucionar, de forma efectiva, os seus problemas comuns.” (Koehnen) 

“Unir esforços para resolver, de forma democrática e científica, os problemas comuns da comunidade apresenta-se como um dos elementos essenciais ao desenvolvimento comunitário” (Holdcroft, 1978, citado por Koehnen)


Ander-Egg, E.(2007). Acción municipal, desarollo local y trabajo comunitário. Universidad Bolivariana de Venezuela.

Outras referências: 

Holdcroft, L. (1978). The Rise and Fall of Community Development in Developing Countries, 1950-65: A Critical Analysis and an Annotated Bibliography. (M. S. University, Ed.) 
Koehnen, T. (s.d.). Desenvolvimento Local : Qualificação de Capital Socia. (UTAD-DESGCETRAD, Ed.) 
Obtido de https://esa.ipb.pt/imagens/eventos/seminarios/s2007_Koehnen.pdf 



By Fatma


A pobreza e a exclusão social em Portugal


"Os conceitos de pobreza e de exclusão social são construídos e delimitados pelo “mundo” dos que se julgam incluídos; urge aqui prioritariamente, atuar, não esquecendo, os “velhos pobres”, criando uma cultura social que assuma a sua coresponsabilidade, que entenda que a exclusão é uma consequência dos modelos, das práticas, dos consumos que escolhemos, que tal situação não é inevitável, e que ninguém está hoje livre de se ver em semelhante situação. Lutar contra a pobreza é lutar pelos mais básicos direitos humanos e é fundamental entender e ter como premissa que a pobreza, para além de não ser uma fatalidade, não é, primariamente, uma responsabilidade dos próprios pobres. Lutar contra a pobreza não deve ser um favor, uma benesse, uma boa vontade ou um alívio de consciências; trata-se de assumir e respeitar os mais básicos e fundamentais direitos humanos. Lutar contra a pobreza é lutar por sermos humanos; lutar pela concretização da integralidade do ser humano. Este é o papel que nós, enquanto interventores sociais, aos mais variados níveis e desde as mais diversas estruturas e formas de resposta, devemos assumir; contrariar o atual cenário significa caminharmos para o (re)estabelecimento de uma cultura da reciprocidade. Devemos (re)aprender a ver, (re)aprender a reconhecermo-nos uns aos outros como semelhantes de facto; se conseguirmos transformar a luta contra a pobreza numa espécie de “arte pública” – com todos, de todos e para todos – em que o bem e o belo, de uma forma comum, sejam a razão dos nossos modelos e escolhas, poderá, então, ser possível falar de inclusão social ou erradicação da pobreza; um novo projeto de cidadania, reencontrando diálogos perdidos, com novos espaços de relação, uma tarefa coletiva contando com a participação de todos, entendendo a erradicação da pobreza como um objetivo prioritário e quotidiano para todos os cidadãos: concretizar o sentimento profundo de permitir que o impossível aconteça: realizar o bem-comum, dignificando a pessoa humana.

…Durante muito tempo imperaram os princípios do assistencialismo mais básico onde o que era importante era precisamente, “assistir” – assistíamos ao que se passava e pouco mais fazíamos; os últimos 20 anos, muito por influência da nossa adesão à União Europeia, introduziram mudanças substantivas. Uma parte das políticas públicas, procuram influenciar uma nova forma de estar e de intervir socialmente; as políticas públicas têm um “código genético” que contraria o assistencialismo mas as práticas e as instituições instaladas encontram grandes dificuldades para as por em prática originando até por vezes grandes perversões (medidas que pretendiam promover a autonomia dos cidadãos criam ainda mais dependências. 

As representações sociais dos portugueses sobre a pobreza e sobre as suas causas continuam a ser bastante conservadoras, continuam a imputar fortes responsabilidades aos próprios pobres pela situação em que se encontram; a emergência da chamada “nova pobreza”, consequência direta da crise financeira e económica, transporta consigo um outro perigo: o regresso a uma visão de que “o que é preciso é dar de comer a quem tem fome”. Ou seja, ainda não tínhamos garantido a mudança cultural e poderemos estar perante um cenário que facilmente influenciará o regresso às formas mais tradicionais de puro e duro assistencialismo. 

* enfrentamos uma crise económica com um impacto social sem precedentes (nos últimos 70 anos) e o risco de pobreza aumenta e afeta novos grupos de cidadãos;
* para ultrapassar um fenómeno desta natureza, que viola quotidianamente os Direitos Humanos de mais de 84 milhões de pessoas na União Europeia (entre os quais se encontram aproximadamente 2 milhões de portugueses), é necessária uma mobilização e participação de todos os atores e, em particular das pessoas que enfrentam esses fenómenos; 
* a pobreza não é uma fatalidade mas fruto de decisões (de todos) que podem ser contrariadas por outras decisões opostas àquelas que estiveram/estão na génese das várias situações de pobreza; 
* a pobreza não pode ser combatida sem envolver os pobres na identificação dos seus problemas e das soluções para os mesmos, sem os escutar, sem os capacitar e sem os permitir participar nos processos de decisão que dizem respeito às suas vidas.”


In: Estudo sobre a percepção da pobreza em Portugal.
Disponível em:
http://www.amnistia-internacional.pt/files/Relatoriosvarios/RelatorioPobreza_com_indice.pdf

Crime, culpa e prisão

EXCLUSÃO SOCIAL , BAIRROS, ETNIAS E MERCADOS INFORMAIS: FACTORES DE CRIMINALIDADE

Os bairros de periferia ou zonas segregadas converteram-se durante os anos 80 num veículo propício ao tráfico de drogas, possibilitando benefícios económicos a populações em situação de precariedade económica, facilitando-lhes o acesso a práticas delinquentes, seja pela venda ou consumo de drogas, seja pela ausência ou rede deficiente de serviços sociais presentes nestes bairros. Sublinha-se também a influência multigeracional nos processos de exclusão, transmitida de pais para filhos, através de progenitores com problemas de alcoolismo, baixos recursos, baixas qualificações, desemprego e com práticas de economias informais. (Gonzalez, 2007)

Estas dinâmicas são transportadas para a vida prisional, nomeadamente a nível de sociabilidade. Os bairros de proveniência da maioria destas reclusas revelam idêntica pobreza e inserção em economias informais - mercados de droga locais, onde raça/etnia e classe interagem e a pobreza reúne populações etnicamente diversas.

Neste contexto evidenciam-se os ciganos, sem hábitos do mercado de trabalho formal, detentores de elevadas taxas de analfabetismo, estigma escolar e propensos desde muito cedo a práticas de economia informal; detêm fracas qualificações profissionais e ausência de tradição de trabalho assalariado. (Gomes, 2012)

Consequentemente, em contexto prisional, as mulheres ciganas, sobressaem pelas condicionantes da pertença étnica, são um estrato social desfavorecido, com a adição das particularidades que o género feminino produz no seu “caminho” desde a infância. A pobreza, na vida destas mulheres e família, associada a outros problemas sociais, reproduz-se e abre portas a actos delinquentes, habitualmente relacionados com o tráfico de drogas, não só por motivações económicas, mas também pelo meio envolvente. (Gomes, 2012)

A exclusão social na actividade criminosa, explica assim, a imersão destas mulheres do mundo do crime, por via do tráfico ou consumo de estupefacientes, um meio de sobrevivência num ambiente mais rápido e menos perigoso para a manutenção do enriquecimento. (Olmo e Vázquez, 2005)

A PRISÃO: PERDAS E RUPTURAS COM LAÇOS SOCIAIS

A “vida” na prisão não facilita os contactos com o exterior, normalmente as redes sociais evaporam-se, porque pertenciam apenas ao mundo marginal. Persistem os contactos com grupos religiosos que proporcionam suporte emocional (por vezes material) e os contactos com as demais reclusas, que muitas vezes reproduzem as mesmas dinâmicas ligadas ao mundo das drogas.

Esta vida prisional pode ser traduzida através da perda de capacidades como a autonomia, iniciativa, responsabilidade e tomada de decisão, expressando até processos de infantilização (Gonzalez, 2007). O uso de estratégias de sobrevivência em reclusão significam possibilidades de reinserção ou reabilitação, beneficiando reclusas cumpridoras da disciplina prisional, submissas, discretas e silenciosas, que de início já possuíam escolaridade mais elevada e maior nível social e económico. 

Pela sua adaptabilidade, estas reclusas recebem melhor tratamento da parte dos funcionários prisionais, concessão de regalias, etc., e maiores probabilidades de êxito na integração sócio laboral. A outra “face” apresenta-nos as reclusas que à entrada cumulavam desvantagens: toxicodependência, marginalidade, analfabetismo ou formação escassa, laços familiares instáveis, doenças, etc., aquelas com dificuldade de adaptação ao regime disciplinar, que enfrentam funcionárias prisionais, que recebem numerosos castigos, cumprindo as penas na íntegra e com menor contacto com os recursos externos que facilitariam o seu posterior processo de integração.

A localização das prisões afastada dos centros urbanos e com rede de transportes inadequada é outra das consequências da não manutenção das relações com o exterior; as famílias têm dificuldade em visitar as reclusas, quer pelo tempo, quer pelo dinheiro gasto na viagem e os horários de visita impostos implicam distanciamento e ruptura de muitos vínculos pessoais. O distanciamento referido prejudica as reclusas a nível psicológico e significa perda de oportunidades de futura inserção. (Gonzalez, 2007)

A “PRECÁRIA” SAÍDA DA PRISÃO

Prisão como ela é hoje, é sinónimo de ausência de mercado laboral e redutora da possibilidade de acesso ao mesmo, por inexistência de formação adequada, factor decisivo no panorama do mercado económico laboral. A limitação de uso e acesso às novas tecnologias considera em si mesma uma nova forma de exclusão, sustentada pelo abismo tecnológico e ignorância do mercado laboral.

O trabalho prisional é pouco qualificado e de “costas voltadas” para o exterior; a educação e formação profissional é reduzida à alfabetização, escolaridade, programas para estrangeiras, leitura e formação em novas tecnologias e a formação profissional a ocupações femininas como cabeleireiro e estética, confecção, ponto cruz e pintura.

Estas mulheres saídas da prisão, mesmo possuidoras de maior nível de acesso ao trabalho remunerado, continuam ainda a sofrer das fragilidades descritas através de desigualdades salariais, segregação de género, maior taxa de trabalho temporário, trabalho a tempo parcial e categoria laboral inferior. Para elas, a saída da prisão assemelha-se a uma nova condenação, adivinhando o medo do estigma social, germinando processos de ansiedade, insegurança e baixa auto-estima; se conseguem encontrar um trabalho e inserir-se em sociedade, têm de inventar anos de vida para ocultar esse passado. (Gonzalez, 2007)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na tentativa de abarcar todas as temáticas explanadas deparamo-nos com jovens reclusas, com tradições e etnias, questões de género, pobreza e outras vertentes de exclusão nas suas variadas formas. Estas mulheres punidas pelos seus crimes e privadas de liberdade apresentam sintomas de outras privações, sejam elas morais, culturais, familiares ou outras. Em reclusão são privadas também da família, cônjugues e filhos e lamentavelmente ser mulher detida e toxicodependente, como desde os tempos dos nossos avós significa ainda “vergonha” exprimida pelo abandono. As “penas” vivem-se assim nas suas distintas facetas, por “culpa” dos bairros, da exclusão social, da pobreza, da etnia, do género, enfim…culpa pelo crime, culpa pela prisão, qual será a principal “culpa”?

BIBLIOGRAFIA

Gomes, S. (2012). Vidas Excluídas: Trajectórias ciganas femininas reflectidas em contexto prisional. VII Congresso Português de Sociologia, (pp. 1-14). Porto.
Obtido de: http://www.aps.pt/vii_congresso/papers/finais/PAP0077_ed.pdf

González, N. (2007). Mujeres de prisión. Em La prisión en España: una perspectiva criminológica (pp. 75-100). Granada, España: Comares.

Olmos, C. & Vázquez, M. (2005). Mujeres Jóvenes en Prisión. Revista de Estudios de Juventud, nº 69, pp. 30-48. 
Obtido de: http://www.injuve.es/sites/default/files/revista69completa.pdf


By Fatma

Identidades Profissionais do Serviço Social


Analisando a trajetória profissional do Serviço Social Português observa-se que os movimentos que visam maior autonomia quer ao técnico, quer ao cidadão-utente são muito recentes. A história mantêm um apelo permanente ao papel de regulação social do assistente social, quer pela via mais reguladora, quer pela via emancipatória, que de acordo com Nunes (2004:44) só é possível se em termos da reflexão histórica da relação social com as formas de Estado o Serviço Social fizer “ (…) este caminho, incrementando dinâmicas de reflexividade que a partir da própria ação dos assistentes sociais se possa construir e organizar um pensamento que refletindo as contradições socais aí presentes se constitua em efetiva alavanca de emancipação”... Qual o caminho a escolher? Pela inovação e prática reflexiva? Pelo Equilíbrio/continuidade e prática reguladora? … a resposta a estas questões encontra-se no posicionamento biográfico e pessoal de cada técnico, como ser singular e coletivo que pode optar pelo posicionamento ideológico que mais se aproxima com a sua identidade herdada da profissão de Serviço Social. …O início do século XXI coloca novas exigências à profissão de Serviço Social para as quais os movimentos de “empowerment” e de “capacitação social” requerem novas estratégias de ação, novo reconhecimento e estatuto da população, bem como uma capacidade de aprendizagem reflexiva que não se coaduna com uma visão residual e casuística dos problemas sociais. É importante envolver o profissional de forma reflexiva na análise da sua trajetória pessoal e profissional e na formulação de respostas teóricas e políticas “de transformação societária, contribuindo para o redimensionamento da profissão na contemporaneidade” (Ianamoto, 2004: 148) ...os assistentes sociais lidam com uma ambiguidade decorrente, de vários fatores que os pressionam para o agir imediato e pragmático em detrimento da reflexão teórica e estratégica (Nunes, Mª 2004:229), o que não lhes permite explorar cabalmente o seu potencial reflexivo e as oportunidades que surgem no meio institucional; exige-se atualmente à profissão de Serviço Social uma nova visão do mundo “que emancipe o direito de cidadania dos sujeitos” (Ibidem: 253). É necessário que os assistentes sociais se consigam libertar de aspetos altamente distributivos e burocratizantes para os transformar em técnicas estratégicas baseadas num maior conhecimento científico, fruto de uma prática reflexiva e de uma permanente atualização para atingir os desafios do século XXI. 

… O seu trabalho está balizado por estes indicadores de resultados. Gosta do trabalho com a população-alvo que são as organizações e os parceiros sociais. Mantêm uma boa relação e partilha responsabilidades. Aos poucos vai perdendo os ideais de “querer mudar o mundo”. Afinal “temos que nos proteger”. No entanto ainda se lembra, com carinho, da entrega dos cabazes de Natal. Mas já não sabe o que aconteceu àquela família. Está a ser acompanhada por outro técnico. A teoria é importante mas de pouca utilidade. A teoria que lhe interessa, agora, é “os manuais da rede social”.

1. A identidade profissional do serviço social espelha as condicionantes históricas, económicas, políticas e sociais da sociedade onde se insere. Mas, não é só um produto dessas mesmas condicionantes. Reflete, igualmente, um processo ativo onde o assistente social assume responsabilidade nas respostas que vai construindo aos questionamentos sociais de cada período histórico. “A estrutura social não age unilateralmente sobre os agentes. Os atores sociais reproduzem ou transformam as estruturas sociais” (Nunes, Mª 2004:46); 

2. A identidade profissional do Serviço Social é prolixa. É segmentada de acordo com os diversos contextos onde se insere e com as especificidades desses contextos. No entanto possui elementos unificadores que se podem rever nos valores profissionais que defendem os direitos sociais e os direitos humanos e um ideal de justiça social, bem como num conjunto de instrumento técnico-operativos que lhe permite uma leitura apropriada da organização social e das políticas sociais subjacentes com as quais trabalha. “Os assistentes sociais têm a responsabilidade de assegurar aos sujeitos socialmente excluídos, a possibilidade de assumir de forma completa os seus direitos e deveres de cidadania” (Martinelli, 2004:249);

3. A identidade profissional do Serviço Social fundamenta-se, igualmente, na prática profissional dos seus agentes. Neste sentido, a prática profissional adquire uma conotação coletiva, no sentido em que é perspetivada como uma “síntese elaborada pelos profissionais, do pensamento historicamente construído pelos seus membros” (Baptista, 2001:55) e que dá significado e intencionalidade ao grupo profissional;

4. A identidade profissional do Serviço Social fundamenta-se num agir e num conhecimento permanentemente construído através da investigação e da reflexão sobre a prática. Estas reflexões capacitam o profissional a questionar o conhecimento, interrogando-o sistematicamente pela prática, na concretização de uma perspetiva crítica capaz de proporcionar uma teoria social;

5. A identidade profissional do Serviço Social é, igualmente, fruto do sujeito que a constrói e a vivência. Pelo que a identidade profissional do Serviço é, igualmente, uma construção pessoal e uma construção coletiva;

6. A identidade profissional do Serviço Social no contexto organizacional (contexto que enquadra usualmente a prática profissional) pode ser construída pelo modo de rutura ou de continuidade (Dubar, 2000; Rosa; 1998). O assistente social no seu processo de construção identitário deve encarar o contexto organizacional não como um campo unilateral da ação profissional, mas, igualmente, como objeto de intervenção, onde existem constrangimentos, mas também potencialidades à edificação do agir profissional;

7. A identidade profissional do Serviço Social encontra-se a atravessar um período de crescimento e de exigência da demarcação de posicionamentos profissionais. Neste novo perfil profissional exige-se um maior comprometimento do assistente social “capaz de sincronizar-se com o ritmo das mudanças que presidem o cenário social (…) e um profissional que seja capaz de ser um investigador, que invista na sua formação intelectual e cultural e no acompanhamento histórico-conjuntural dos processos sociais para deles extrair potenciais propostas de trabalho, transformando-as em alternativas profissionais” (Ianamoto 2004:145) ; este novo perfil profissional deve comprometer-se com uma prática crítica e reflexiva, exigindo ao profissional um “processo permanente de reflexão sobre o que faz e sobre aquilo que pensa que fez“ (Dominelli 2004: 250).

Mais do que as configurações identitárias relativas aos protótipos Humanista/Assistencialista e Humanista/Tecnicista, predominantes na atualidade, defende-se a emergência de uma nova possibilidade de identidade profissional, mais consentânea com os valores e realidades sociais atuais, a designar por identidade Humanista/Reflexiva que englobará o percurso e as condições, ao mesmo tempo que colocará novos desafios quer à prática profissional, quer aos organismos reguladores e formativos como o Estado, as Escolas e os contextos da prática profissional. Esta identidade exige a responsabilização do técnico no seu projeto ético-profissional, mas também potencializa um maior reconhecimento social e a existência de novos debates sobre o pensamento social do assistente social. A especificidade da identidade humanista/reflexiva baseia-se nas estratégias metodológicas de intervenção profissional que, como refere Fook (2002) revelam capacidade de instrumentalização dos aspetos teóricos de aprendizagem (em contexto formativo e em contexto profissional), donde se constrói uma teoria da prática profissional, aliada ao movimento crítico de Serviço Social e próximo da conceptualização do Serviço Social Moderno atento às formas de interdependência entre estruturas/contextos, atores/agentes e intervenção/inclusão. Esta tríplice é fundamental para a apreensão da complexidade e multidimensionalidade da realidade social onde as diversas vozes que regulam a vida individual devem ser enquadradas de forma “autorreflexiva pelo profissional de Serviço Social” (Fook, 2002:78). 

O contexto específico de intervenção profissional baseia-se num código interno (fundamentado pelas políticas institucionais do agir profissional) de interação profissional onde participam todos os atores sociais, bem como os objetivos profissionais, permitindo, desta forma, a criação de uma identidade própria ao grupo profissional; sendo o contexto de intervenção profissional um dos elementos constituintes da identidade profissional decerto delimitar-se-ão outras configurações identitárias em contextos diversificados. 

(i) Dentro das teorias funcionalistas e interacionistas o Serviço Social tem dificuldades em cumprir alguns dos requisitos para ser assumida como profissão, designadamente os requisitos que se prendem com a especificidade de funções e de campo de intervenção, bem como a existência de um corpo teórico solidamente edificado e constituinte como matriz da identidade profissional. Macdonald (1995) e Abbot (1998) inscrevem a profissão de Serviço Social na tipologia específica do que consideram as “profissões de cuidado”. Estas profissões conjugam critérios que as tornam singulares no mundo das profissões, apesar de não preencherem os requisitos atrás mencionados. Estes critérios referem-se assim às seguintes circunstâncias: estes profissionais têm uma clientela em situação de precariedade económica e social e, por conseguinte, não produzem de forma imediata e visível qualquer retribuição económica, pelo que estão excluídos do mercado capitalista de trabalho; 

(ii) estes profissionais possuem um saber, essencialmente prático, onde o quotidiano profissional e a realidade social, em permanente mutação, lhes exigem uma “atualização” constante pelo que se torna difícil a aquisição de metodologias específicas de intervenção social; 

(iii) a aparente familiaridade que estes profissionais possuem com redes de solidariedade informais e com técnicas de aconselhamento pessoal pode ser percebido, pelo público em geral, como práticas profissionais baseadas no senso comum. 

A indeterminação metodológica é avivada, na opinião de Macdonald (1995) pela sua formação académica polivalente e generalizada, não transmitindo uma especificidade teórica e metodológica. Outros autores, como Parton (2000) referem que a incerteza na classificação de Serviço Social como profissão baseada no fundamento da inexistência de um corpo teórico específico que potencialize uma metodologia de intervenção própria é uma falsa questão; dentro do paradigma construtivista, a produção de conhecimento nas ciências sociais e humanas (onde se inclui o Serviço Social) é o resultado de um processo mental ativo baseado nas experiências do indivíduo e na relação que este estabelece com o objeto de estudo. A verdade absoluta, rigor e precisão dão lugar a valores como viabilidade, coerência entre pensamento e ação, ética e responsabilidade. Todo o conhecimento tem sentido no contexto em que é produzido pelo que a sua generalização não é verificável. Se por um lado, é difícil integrar o Serviço Social no mercado capitalista de trabalho, regido por uma lógica economicista e se existem dificuldades no trabalho quotidiano em adequar permanentemente metodologias de intervenção específica aos pedidos sempre urgentes e mutáveis da população, também os argumentos de Parton (2000) na produção do conhecimento científico podem ser verificáveis no Serviço Social, pelo que o Serviço Social possui o estatuto de profissão onde as condições sociais circundantes legitimam e reivindicam a sua posição. Isto é, o grupo profissional de Serviço Social existe na sociedade não como um observador, mas como um ator detentor de uma identidade coletiva num sistema de ação concreto que se constrói constantemente; a capacidade de reflexividade do técnico, bem como o seu conhecimento particular e crítico dos elementos que constituem a teia social, permitem um reenquadramento permanente e atual de esquemas de intervenção teórico-práticos capazes de proporcionar a mudança social e proporcionar não só uma leitura fidedigna desses mesmos elementos, como em circunstâncias ideais a sua apropriação e utilização instrumental para a prática profissional. O Serviço Social vive um momento interessante da sua formação e da sua consolidação enquanto profissão legítima e socialmente legitimada, mas os profissionais, escolas e organizações têm responsabilidade no rumo que esta poderá tomar.


Clara Cruz Santos
Rostos de uma profissão: Identidades Profissionais do Serviço Social